Project Gutenberg's Sustos da Vida nos Perigos da Cura, by Bento Morganti This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Sustos da Vida nos Perigos da Cura Author: Bento Morganti Release Date: December 11, 2010 [EBook #34626] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SUSTOS DA VIDA NOS PERIGOS DA CURA *** Produced by Mike Silva SUSTOS DA VIDA NOS PERIGOS DA CURA, OU CARTA, Que hum amigo escreveo a outro, estando convalescendo, depois de huma enfermidade. LISBOA: Na Offic. de ANTONIO VICENTE DA SILVA. Anno de MDCCLVIII. _Com todas as licenças necessarias._ Meu Amigo, e Senhor. Graças a Deos, que depois de huma enfermidade dilatada me acho restituido a estado de poder escrever a V. m. e naõ foi pequeno milagre escapar da cura, em que tive mayor perigo, do que aquelle, que me causava a molestia; pois por muito pouco que a natureza se descuidasse em me soccorrer, sem duvida entre a má applicaçaõ dos remedios perderia irremediavelmente a vida. Agora que me acho livre do susto nesta convalescença, ja que naõ posso fazer outra cousa, quero-me divertir ao menos em dizer a V. m. o de que escapei pelos enganos da Medicina, e pela ignorancia de alguns de seus professores, que ordinariamente se reputa por hum grande bem, e excellente soccorro para a conservaçaõ da vida; mas eu entendo que neste caso podemos exclamar com Seneca: _Oh fallax bonum, quantum malorum fronte, quàm blanda tegis._ E eu naõ sei se conseguiriamos huma melhor utilidade sem o suffragio deste chamado bem, do que com a introducçaõ deste honesto, e louvavel engano. Todos sabemos a correspondencia, que o homem, mundo abbreviado, tem com a grande extensaõ do mundo, porque assim como este subsiste pela uniaõ dos quatro elementos, assim tambem o corpo se conserva pela mistura dos seus quatro humores; e pervertido o bom equilibrio de algum delles, se conhece logo aquella ruina, que fica debaixo da sua jurisdicçaõ. Como naõ podemos conhecer estas causas occultas, recorremos ao soccorro dos Medicos, relatando-lhes os effeitos, que sentimos, para que elles, segundo os preceitos da sua arte, cheguem ao verdadeiro conhecimento das causas, e applicando-nos o remedio, restituaõ a natureza ao seu verdadeiro tom. Este he o fim da Medicina, e o para que buscamos os seus professores. Mas _hoc opus, hic labor est_. Ninguem póde duvidar ser a Medicina huma arte Divina, e para credito da sua excellencia basta ser exercitada pelo mesmo Christo, de que o novo Testamento, nos offerece repetidos exemplos; e Deos pela boca do Espirito Santo nos manda honrar muito os bons, e verdadeiros professores desta sciencia: como tal tem seus principios certos para dirigir os seus professores, de sorte que a exercitem em utilidade dos homens, e em bebeficio das Republicas; porém os que se naõ applicaõ como devem no conhecimento desses principios, destroem sem duvida a excellencia da arte, e invertem o fim, para que ella se introduzio, de sorte que a enchem de imposturas, e defeitos; e enganando o mundo com a sua pessima pratica, fazem conceber a huma arte taõ nobre, e taõ necessaria hum odio entranhavel, hum susto continuo, e hum desprezo universal, de que se segue conceberem todos, que sem duvida andaõ enganados, e nunca desenganados destes falsos Medicos. Por este receyo entendo que naõ deixará de ser mil vezes melhor na presença de alguma queixa viver antes com ella, do que entregar-se nas mãos de qualquer Medico, pela difficuldade, que temos em distinguir o máo do bom; porque será muito melhor viver mais tempo, ainda que sujeito ao discommodo de huma saudade arruinada, do que abbrevir a vida com o pretexto de recuperar a saude. A enfermidade presente me acabou de desenganar, porque por muitos principios comprendi o pouco conhecimento, que alguns professores tem dos principios das queixas, e o muito, que confundem os effeitos com as causas; e o que he mais sensivel, o grande descuido, que tem em exercitar o officio de coadjutores da natureza, porque principiando a molestia por huma indigestaõ, quizeraõ tirar-me pelas veyas o mal, que tinha no estomago; e concebendo a febre por causa, sendo na verdade effeito, arrastràraõ para a massa do sangue o que estava nas primeiras vias, e sem outra alguma evacuaçaõ me puzeraõ a morrer, quando com pouco trabalho me podiaõ ter curado; mas por naõ passarem da tarifa, para cuja observancia me parace que tem dado entre si juramento, sobre indigestaõ vieraõ leites, vieraõ tizanas, vieraõ frangos, e o que veyo de mais especial foraõ humas pitadas de nitro, e com a simples repetiçaõ destas drogas pertendiaõ livrar-me das garras da morte. Este facto proprio me fez lembrar huma especie, de que sem duvida naõ passaõ as enfermidades de tres classes, ou saõ de sua natureza curaveis, ou incuraveis, ou indifferentes. Nas curaveis póde a natureza supprir todos os erros da arte: nas incuraveis nem toda a arte póde emendar a ruina da natureza, e por força lhe hade ceder: nas indifferentes he que he todo o trabalho, todo o susto, e todo o perigo. Ora diga-me V. m. Quem com huma doença indifferente se ha de metter sem susto nas maõs de hum Medico, que poderá naõ conhecer os principios da sua queixa, e suppondo que he huma, curalla como outra, com o que póde vir a ser maligna huma leve fermentaçaõ febril, com que a natureza se pertende muitas vezes aliviar? Quem naõ terá susto de ver á sua cabeceira hum homem, de quem, como de causa segunda, está dependente a sua vida? Quem deixará finalmente de estar a cada hora esperando que lhe cortem os fios da vida simplesmente com dous rasgos de huma penna, ou com hum, ou dous leves borrões de tinta? O certo he, que tudo isto se póde temer, vendo-se a pouca diligencia, que a mayor parte dos Medicos fazem para curar bem, e a negligencia, que se pratica, para que sómente curem os bons Medicos. Bem conheço que dos homens he o errar, e que só as intelligencias estaõ izentas deste defeito; mas como a Medicina tem preceitos certos, como he possivel que deixem de errar todos aquelles, que ignoraõ os principios, ou se os sabem, naõ passaõ de huma pura materialidade, sem que o discurso se adiante a fazer com que elles tenhaõ todo aquelle bom exito, a que se terminaõ? Eu assento em que deixada a certeza dos principios, e certas leis, a que está sujeita esta sciencia, toda a Medicina se funda em hum bom discurso, e raciocinio; e quem melhor o fizer, esse poderemos ter por melhor Medico: sendo certo que em huma casa ás escuras tanto vê quem tem dous olhos, como quem naõ tem nenhum, e que mais acertará quem melhor tino tiver. Mas como póde atinar quem naõ tem bom tacto? E como acertará ás apalpadellas quem naõ tiver hum bom discurso? A este respeito quero referir a V. m. hum successo moderno, para confirmar que antes me hey de curar com hum Cirurgiaõ de experiencia, a quem assista hum raciocinio claro, do que com hum Medico máo, que naõ tenha outro discurso mais, que para entender muito ao pé da letra huma infiada de afforismos de Hypocrates, e sentenças de outros membros graves, restauradores da antiga Medicina, a quem como oraculos recorrem, e de que tem feito na memoria hum bom deposito para comprarem a credulidade do vulgo ignorante. Ainda naõ ha quinze dias, que achando-se certo Cirurgiaõ dos de melhor credito na quinta de hum Fidalgo nas vizinhanças de Lisboa, se ouvíraõ de repente humas vozes chamar por Confissaõ. Acudíraõ a estes clamores varias pessoas, e logo hum Sacerdote douto, levado do pio zelo, inseparavel do seu instituto, acudio com o Sacramento da Penitencia a hum pobre homem, que por elle estava suspirando. A este tempo acudio tambem o bom Cirurgiaõ, e achando hum pulso alguma cousa opprimido, e a vista indicando huma especie de frenezim, para cuja suspeita concorria tambem a incerteza das palavras, se lembrou de que os preceitos da arte determinavaõ neste caso a sangria, e outros remedios violentos, e quasi se vio convencido a fazellos; mas discorrendo sobre os mesmos preceitos, lembrando-lhe algumas das suas limitaçoens, suspendeo este meyo, e recorreo a outro, formando juizo de que pelas informaçoens, que tomou do estado, em que antecedentemente se achava o enfermo, naõ passava aquelle accidente de poder ser huma mania accidental, que com pouco trabalho, e prejuizo do enfermo teria facil cura. Assentando nisto, pedio huma palmatoria, e convertendo as sangrias, e purgas em duas duzias de palmatoadas, com promessa de lhe aggravar as penas, na manhãa seguinte o achou bom, e livre de cuidado; e se naõ fora doerem-lhe as mãos, trabalharia logo no seu officio, que era de alfayate. Seguro a V. m. que muitos dos que vissem curar huma oppressaõ de pulso, acompanhada de hum icterismo á cabeça, com o pouco custo de duas duzias de palmatoadas, teriaõ, que rir por muito tempo, e fariaõ pessimo conceito do operante; mas quem considerar que a força do raciocinio, e bom discurso o guiou para este remedio, conhecerá que na Medicina mais, e melhor acerta quem melhor discorre, porque neste caso julgou serem aquellas vozes effeito de huma mania accidental, que muitas vezes com remedios exasperantes, e temores propostos se dissipaõ as nevoas, que occasiona a força, e violencia de huma hypocondria exaltada. Finalmente, para que V. m. acabe de conhecer o perigoso estado, em que se acha a nossa vida, pela difficuldade, que temos em saber quaes saõ os Medicos bons, para recorrermos a elles em beneficio da conservaçaõ da saude, e os máos para evitarmos cahir nas suas maõs, bastará contar tambem a V. m. o que se passou naõ ha muito tempo com hum homem servente de certa Communidade, o qual adoecendo gravemente, se lhe chamou hum destes Medicos embandeirado na classe dos bons. Principiou logo a sua cura na fórma do estylo, de cujos remedios naõ experimentou o enfermo alivio algum. Aggravou-se a doença de sorte, que o mandou sacramentar por Viatico. Lembrou-lhe por ultimo dar-lhe as sarjas, por naõ faltar ao costume, que he applicar-se este remedio, como a Santa-Unçaõ no extremo da vida, quando de ordinario naõ aproveita aos enfermos; mas o doente, que ouvio quasi proferida a sentença de morte, appellou do Medico para o mesmo Medico, dizendo que tinha que lhe communicar em segredo, antes que nelle se executasse o ultimo supplicio. Ouvio com bom animo o Doutor o segredo, e este consistio em lhe dizer o réo, que elle por occasiaõ do Terremoto fugira para a sua terra, mas a tempo que ja estava prevenida a reconduçaõ dos desertores; que sendo prezo por hum Ajudante, tivera meyos de lhe escapar, e se recolhera ao sitio, em que se achava; e que vindo casualmente a elle o mesmo Ajudante, o conhecêra, e o ameaçára com a proxima monçaõ da India, e que elle para escapar deste desterro se fingira doente, e mostrára aggravar-se-lhe a enfermidade, e assim que estava com grande escrupulo na sua consciencia em se ter sacramentado por Viatico, naõ tendo na verdade cousa alguma. Ficou suspenso o Medico, e dando mais credito ás palavras do enfermo do que ao pulso, a huma informaçaõ delirante, que ás vozes da natureza, entrou a contristar-se de ter concorrido para aquelle escrupulo e escrupulizando muito mais de ter curado hum homem de maligna, sem ter na realidade cousa alguma. Vendo a enfermeira que lhe suspendia as sarjas, perguntou o motivo; ao que o Medico respondeo, que o homem era hum embusteiro, e que naõ tinha cousa alguma, referindo-lhe o successo, e que assim só cuidava em lhe remediar o damno, que lhe tinha feito por conta do seu embuste. A esta confissaõ da sua ignorancia, que cuido seria sincera, acudio a enfermeira, dizendo, que se admirava muito de ver que depois de cahir na primeira cahisse tambem na segunda; porque tanto se tinha enganado, quando principiou a curar, visto dar tanto credito ás palavras do enfermo, como agora, quando o doente o enganára no que lhe dissera, pois elle nunca sahio daquelle sitio, nem fugira, nem tal Ajudante o ameaçára, porque tudo eraõ effeitos de hum grande delirio, em que o tinha posto a maligna, e que logo logo o sarjasse. Conveyo com a instancia, applicou-se o remedio, e se acha inteiramente saõ como hum pero. Agora veja V. m. a quem aquelle homem deveo a sua vida, se foi mais ao conhecimento de huma mulher, que lhe assistia, do que a num Medico, que lhe tomava o pulso? e o juizo, que este faria no principio, no estado, e no progresso da enfermidade, quando julgando por erro os primeiros acertos, lhe pezava de ter acertado, só porque o enfermo lhe dizia, que naõ tinha cousa alguma; e se na verdade assim fosse, achava-se o miseravel homem precisado a curar-se de huma enfermidade, que lhe introduzio a impericia de hum Medico. Isto he impossivel deixar de succeder todos os dias, porque a respeito dos Medicos, assim como a respeito do mais, suppre de ordinario o favor, e o patrocinio á falta de sufficiencia, pois em havendo qualquer empenho todos curaõ. E se naõ, lembre-se V. m. daquelle nosso amigo, e companheiro, que depois de naõ poder capacitar-se de hum unico ponto da postilla do nosso Mestre o Senhor Manoel Tavares Coutinho, Lente de Vespera de Canones, foi para o Brazil, onde sem mais estudos quiz exercitar o officio de Advogado; e adquirindo muito má fama por esta occupaçaõ, voltou para a Corte, sem mais cabedal que aquelle, com que foi. Passados alguns annos, nos disse no adro da Trindade, que tornava a ir para o mesmo Estado, ainda que com diverso emprego, em que esperava adquirir melhor fortuna, pois teve quem o patrocinou para levar o cargo de Fysico Mór das Minas Geraes; e perguntando-lhe V. m. que tinha mais confiança com elle, como havia de ser isso de curar? elle lhe respondeo, que levava bom provimento de receitas para malignas, para cezoens, para hydropezias, e para todo o genero de enfermidades, que lhe adquiriraõ varios amigos, e que na occurrencia de alguma enfermidade pegava na primeira, e se esta falhasse, applicava a segunda, assim a terceira, até acertar com alguma. Elle foi, e alguns annos depois, que ainda naõ ha quatro, ou cinco, o encontrei em certo sitio curando, supponho como nas minas, com o partido de Medico de certa Communidade Religiosa, e do mesmo lugar, em que se achava. Quando vi semelhante caso, me lembrou logo o que succedeo entre hum Fidalgo, e o seu cozinheiro. Era o Fidalgo Védor da Fasenda, a quem tocava a repartiçaõ da Casa da India. Chegou-se a monçaõ, e o cozinheiro em premio do bom serviço, que tinha feito ao Fidalgo no decurso de muitos annos, lhe pedio a praça de Piloto da náo de viagem. Admirou-se o Fidalgo da petiçaõ, e lhe disse como era possivel que elle soubesse marcar huma náo em huma viagem taõ dilatada, quando nunca tinha sahido de sua cozinha? Ao que constantemente respondeo o cozinheiro: _Senhor, isso he historia, nomee-me V. Senhoria para piloto, que o mais fica por conta da fortuna, porque as náos, que vaõ para a India, Deos as leva, e Deos as traz, que o mais de pouco importa._ Com que, meu amigo, applico el cuento, com semelhantes Medicos tudo fica por conta de Deos, e se escapamos das suas maõs, he grande milagre, e se algum sabe mais alguma cousa, he pelo estudo, que faz nos vivos, a quem tira a vida, e nenhum pelos mortos, que he onde poderiaõ achar methodo, e doutrinas para curar com menos detrimento dos miseraveis enfermos. Mas que ha de ser, se alguns, a quem assiste mais huma pouca de curiosidade, quizessem fazer mayor estudo, nem para isso tem tempo, e apenas pódem, como os Siganos, tomar de cór aquella certa giria para fazerem as suas curas, segundo o systema presente, para o que pouco trabalho basta, e sobeja. He taõ precioso o tempo, que para os professores desta arte todo se converte em dinheiro, e assim mais encarregados do que carregados de visitas, passaõ o dia inteiro em correr as ruas, subir, e descer escadas, praticar com os Cirurgioens, e Boticarios, que saõ as adelas do seu conceito; e chegando a casa, ou ao meyo dia, ou á noite, como vem fatigados, naõ olhaõ para livro, nem lhes lembraõ os doentes; porque, como saõ muitos, por huns esquecem os outros; e como as visitas estaõ feitas em numero, está vencida a paga, pois tirando o tempo para estudar, do numero dos enfermos vem a perder o que com elle poderiaõ adquirir, e já hoje naõ está o tempo para ninguem se perder. Bem reconheceo esta falta de tempo certa pessoa grave, quando encontrando-se na rua dos Douradores, que antigamente era muito estreita, com tres Medicos, que estavaõ conversando, gritou aos criados, que parassem, porque naõ era justo pertubar os Senhores Doutores naquelle pouco tempo de estudo, que talvez estivessem conferindo sobre alguma enfermidade. Meu amigo, sem estudo ninguem sabe, e saber sem estudar só o conseguio Salomaõ; mas a sua incomprehensivel sabedoria se lhe communicou dormindo, e foy o unico, a quem Deos fez essa mercê, para que se conhecesse que dormindo, ou sem diligencia só por milagre se póde ser sabio. Quem estuda, muitas vezes sabe pouco, e ordinariamente confessaõ os doutos, que a utilidade, que tiraõ dos seus estudos, he conhecerem o pouco que sabem, e o muito que lhes falta por saber. E que fará quem naõ estuda cousa alguma? O certo he que o estudo ordinario destes professores se termina ao methodo, que hum Medico, reputado por grande, deo a outro, que o consultou, estando elle huma manhãa passeando nos claustros do Convento de S. Francisco da Cidade. Pedio o Medico moderno ao antigo, que lhe désse huma norma, e direcçaõ para estudar, e saber o que fosse necessario para adquirir tambem o conceito de bom Medico, como elle tinha na Corte. Respondeo-lhe o antigo: Senhor Doutor, assente em que para ser tal, qual V. m. deseja, basta que chegue a enterrar nestes claustros tantos miseraveis enfermos, quantos eu tenho mandado para elles, e para outros desta Cidade, e naõ se canse com mais estudo, porque o vulgo ignorante crê como no Evangelho a maxima de que Medicos velhos, e Cirurgioes moços saõ os melhores. Naõ deixo de reconhecer alguma razaõ, em que se funde esta maxima, mas quando ella se estabeleceo foy naquelle tempo, em que se observava huma experiencia continua unida a hum estudo continuado, e huma especulaçaõ exacta a huma pratica cheya de observações; e como esta se naõ adquire, senaõ com o curso dos annos, he certo que o bom Medico, que for velho, sendo deste genero, será o mais excellente. Mas que importará o numero de annos, se faltar o estudo, e a exacçaõ nas observações da pratica? Serve de tanto, como se vio praticado neste nosso Hospital de Lisboa com hum dos seus primeiros Medicos, o qual eu ainda conheci muito bem. Foi este acompanhado dos seus praticantes, e enfermeiro fazer a visita de manhãa aos enfermos, e discorrendo pelas camas, foy ordenando o que lhe pareceo. Chegou a huma, tomou o pulso ao vulto, que estava nella, e voltou para o enfermeiro, dizendo: _A este mais duas sangrias._ Replicou-lhe o enfermeiro: _Senhor Doutor, este morreo esta noite._ Fez taõ pouca impressaõ no senhor Medico esta modesta reprehensaõ, que com o mesmo socego de animo, com que determinou as sangrias a hum cadaver, com o mesmo respondeo: _Pois enterrem-no, que he o que se segue. Vamos adiante._ Deos me livre de que hum destes me tome o pulso; porque ainda estando eu com boa saude, vendo que as arterias tem pulsaçaõ, logo me manda sarjar, quando elle achou a hum defunto pulso para lhe mandar continuar com as sangrias. De que se manifesta, que os annos sem estudo sim fazem hum homem velho, mas naõ faraõ hum homem sabio. Naõ faltou quem discretamente atribuisse a morte repentina de hum amigo seu a ter visto em sonhos certo Medico máo, que havia no seu tempo, e bastou ver em sonhos aquelle objecto para perder a vida. Se só a imagem na fantezia produzio hum tal effeito, como podemos esperar melhores successos, andando a nossa vida manipulada pela realidade do figurado? Se hum destes só visto em sonhos matou hum homem, como naõ faraõ peyor estrago tantos daquelle mesmo lote, que vivem realmente entre nós, e de que nos vemos cercados, como de inimigos da nossa saude? O certo he, que devemos dar muitas graças a Deos de estar vivos, achando-nos no meyo de tantos coadjutores da morte, que para serem mais expeditos, quasi todos andaõ a cavallo, conhecendo muito bem que sempre a Cavallaria fez mayor estrago, do que a Infantaria, e tambem para imitarem em tudo a figura, que substituem, porque assim a vio S. Joaõ: _Et in quarto equo palidi ibat mors._ Com o que me parece que naõ podemos achar seguro lugar, onde nos naõ alcance a influencia deste contagio, e ainda nos lugares mais sadios podemos experimentar este damno. He muito para ver, e muito mais para recear o modo como hum destes sentencea camerariamente a nossa vida, sem haver outro delicto mais, que entregarmo-nos sem reflexao nas suas maõs. Para hum réo, que commetteo talvez hum delicto grave, naõ basta a sentença de hum Juiz inferior, porque nem elle tem authoridade para condemnar, e só remette as culpas ao Tribunal superior. Nomeaõ-se Ministros, faz o Relator o extracto do processo, votaõ cinco, sette, ou mais Ministros, segundo pede a gravidade da causa, ou a igualdade dos votos, e quando se profere a sentença de morte he depois de se vencer pelo mayor numero. E sendo para hum delinquente necessaria tanta circumspecçaõ, para se tirar a vida a hum homem, que está innocente, basta o juizo inferior de hum destes Medicos, que sentenceando de morte com effusaõ de sangue, acha logo Ministro de justiça prompto com o ferro, e com o fogo para summariamente remetter o enfermo para o outro mundo; e muitas vezes nem tanto he necessario, porque basta o Medico só com accrescentar na receita hum ponto com a penna, assinando quatro em lugar de tres, e com isto fica tudo concluido. Eu bem sei que aquelle, que quer parecer mais circumspecto, tambem convoca a sua especie de relaçaõ, a que chamaõ junta, para que no caso de algum máo successo, ter escudo para conservar o seu conceito; porém isto para mim he cousa de rizo, pois o que eu tenho muitas vezes observado he conversar nestas juntas sobre a bondade das suas mulas, do bom serviço de seus criados, e com isto misturaõ algumas leves reflexoens do estado da doença, e no fim remataõ a Conferencia com approvarem tudo o que o senhor Doutor assistente tem determinado, e quando muito, para mostrar que de alguma Cousa servio esta despeza, mandaõ ajuntar dous grãos de sevada da terra, ou na agoa de escorcioneira, ou em alguma tizana, e vaõ saffando com a esmóla, e fazendo rancho, constituem entre si huma especie de sociedade, ajustando chamarem para as juntas huns aos outros, e assim vaõ vivendo muito bem, ainda que os enfermos vaõ passando muito mal. O certo he, meu amigo, que pelo muito que tenho visto a este respeito, assento que se as potencias beligerantes pudessem introduzir nos exercitos oppostos hum pequeno pelotaõ de Medicos deste genero, (salvando sempre o bom conceito, que se deve fazer dos bons) conseguiriaõ as suas batalhas sem despeza de polvora, e bala, poupando os soldos excessivos dos Generaes, e mais despezas, que traz comsigo a guerra, porque elles sem mais armas que hum tinteiro, e hum pouco de papel para fazerem os seus recipes, acompanhados dos seus subalternos, que saõ os Cirirgiões, armados com os seus estojos, e patronas com quatro lancetas, e huns poucos de ferros ferrugentos, e os Boticarios com o seu livro do _quid pro quo_ em bandoleira, fariaõ sem duvida em oito dias mais destroço, do que o exercito poderia experimentar em seis mezes de campanha. Finalmente, por nao cansar mais a V. m. e eu estar tambem já cansado de escrever, naõ digo o muito, que me occorre a este respeito, e só peço a V. m. que tenha muito cuidado em conservar sem desordens a vida, para lograr hum estado de perfeita saude, e naõ chegar a ter necessidade de cahir no erro commum de chamar Medico, que naõ seja Medico, que lha destrua de todo; e esta diligencia de chamar Medico bastará que V. m. a reserve para a ultima enfermidade, para mostrar que naõ deixa de morrer à moda; ou tambem, quando por muito velho, e achacado se enfastiar de viver, quizer livrar-se desse embaraço por meyos competentes, que fique salva a sua consciencia, porque elles teraõ todo o cuidado de lhe dar a morte embrulhada em alguma emulsaõ, ou dentro de hum frango, lembrando-se que obraõ nisto huma especie de caridade, verificando que a respeito de huma vida cheya de padecimentos naõ he pena a morte, mas sim o fim, e complemento de todas as penas, como escreveo hum discreto: _Mors non poena, sed ultima poenarum est._ Mas se por acaso, ou fatalidade lhe succeder o contrario, que antes disto lhe seja preciso recorrer a elles pelo costume, encolha os hombros, e console-se com Ouvidio, dizendo: _Me quoque fata ligant._ Ainda que lhe recommendo muito, e me cuide em fugir, quanto lhe for possivel, destes tres inimigos do corpo, assim como Christaõ deve fugir dos da alma, pois se os da alma, que saõ mundo, diabo, e carne, a arruinaõ por natureza, assim o Medico, Cirurgiaõ, e Boticario tem por officio destruir a saude, e arruinar o corpo. Eu terei grande gosto de saber que V. m. passa livre de necessitar valer-se de semelhantes inimigos, que eu, graças a Deos, por agora escapei por occulta providencia dos ordinarios effeitos das suas obras, e fico muito prompto para me empregar no serviço de V. m. que Deos guarde muitos annos. Lisboa, 20. de Abril de 1756. De V. m. Muito amigo, e criado _Jozé Acursio de Tavares._ End of the Project Gutenberg EBook of Sustos da Vida nos Perigos da Cura, by Bento Morganti *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK SUSTOS DA VIDA NOS PERIGOS DA CURA *** ***** This file should be named 34626-8.txt or 34626-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/3/4/6/2/34626/ Produced by Mike Silva Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at https://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. 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Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.