The Project Gutenberg EBook of Eurico o presbytero, by Alexandre Herculano

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org


Title: Eurico o presbytero

Author: Alexandre Herculano

Release Date: June 14, 2014 [EBook #45966]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK EURICO O PRESBYTERO ***




Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões
and the Online Distributed Proofreading Team at
http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned
images of public domain material from the Google Print
project.)






Nota de editor: Devido à existência de erros tipográficos neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Junho 2014)








EURICO O PRESBYTERO









QUINTA EDIÇÃO







LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1864





Para as almas, não sei se diga demasiadamente positivas, se demasiadamente grosseiras, o celibato do sacerdocio não passa de uma condição, de uma formula social applicada a certa classe d'individuos cuja existencia ella modifica vantajosamente por um lado e desfavoravelmente por outro. A philosophia do celibato para os espiritos vulgares acaba aqui. Aos olhos dos que avaliam as cousas e os homens só pela sua utilidade social, essa especie d'insulação domestica do sacerdote, essa indirecta abjuração dos affectos mais puros e sanctos, os da familia, [vi] é condemnada por uns como contraria ao interesse das nações, como damnosa em moral e em politica, e defendida por outros como util e moral. Deus me livre de debater materia tantas vezes disputada, tantas vezes exhaurida pelos que sabem a sciencia do mundo e pelos que sabem a sciencia do céu! Eu, por minha parte, fraco argumentador, só tenho pensado no celibato á luz do sentimento e sob a influencia da impressão singular que desde verdes annos fez em mim a idéa da irremediavel solidão d'alma a que a igreja condemnou os seus ministros, especie de amputação espiritual, em que para o sacerdote morre a esperança de completar a sua existencia na terra. Supponde todos os contentamentos, todas as consolações que as imagens celestiaes e a crença viva podem gerar, e achareis que estas não supprem o triste vacuo da soledade do coração. Dae ás paixões todo o ardor que poderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, [vii] aos sentidos a maxima energia e convertei o mundo em paraizo, mas tirae delle a mulher, e o mundo será um ermo melancholico, os deleites serão apenas o preludio do tedio. Muitas vezes, na verdade, ella desce, arrastada por nós, ao charco immundo da extrema depravação moral; muitissimas mais, porém, nos salva de nós mesmos e, pelo affecto e enthusiasmo, nos impelle a quanto ha bom e generoso. Quem, ao menos uma vez, não creu na existencia dos anjos revelada nos profundos vestigios dessa existencia impressos n'um coração de mulher? E porque não sería ella na escala da creação um anel da cadeia dos entes, presa, de um lado, á humanidade pela fraqueza e pela morte e, do outro, aos espiritos puros pelo amor e pelo mysterio? Porque não sería a mulher o intermedio entre o céu e a terra?

Mas, se isto assim é, ao sacerdote não foi dado comprehendê-lo; não lhe foi dado julgá-lo pelos mil factos que no-lo tem dicto, [viii] a nós os que não jurámos juncto do altar repellir metade da nossa alma, quando a providencia no-la fizesse encontrar na vida. Ao sacerdote cumpre acceitar esta por verdadeiro desterro: para elle o mundo deve passar desconsolado e triste, como se nos apresenta ao despovoarmo-lo daquellas por quem e para quem vivemos.

A historia das agonias íntimas geradas pela lucta desta situação excepcional do clero com as tendencias naturaes do homem sería bem dolorosa e variada, se as phases do coração tivessem os seus annaes como os tem as gerações e os povos. A obra da logica potente da imaginação que cria o romance sería bem grosseira e fria comparada com a terrivel realidade historica de uma alma devorada pela solidão do sacerdocio.

Essa chronica de amarguras procurei-a já pelos mosteiros quando elles desabavam no meio das nossas transformações politicas. Era um buscar insensato. Nem nos codices [ix] illúminados da idade média, nem nos pallidos pergaminhos dos archivos monasticos estava ella. Debaixo das lageas que cubriam os sepulchros claustraes havia, por certo, muitos que a sabiam; mas as sepulturas dos monges achei-as mudas. Alguns fragmentos avulsos que nas minhas indagações encontrei eram apenas phrases soltas e obscuras da historia que eu buscava debalde; debalde, porque á pobre victima, quer voluntaria, quer forçada ao sacrificio, não era lícito o gemer, nem dizer aos vindouros:—«sabei quanto eu padeci!»

E, por isso mesmo que sobre ella pesava o mysterio, a imaginação vinha ahi para supprir a historia. Da idéa do celibato religioso, das suas consequencias forçosas e dos raros vestigios que destas achei nas tradições monasticas nasceu o presente livro.

Desde o palacio até a taberna e o prostibulo; desde o mais esplendido viver até o vejetar do vulgacho mais rude, todos os logares [x] e todas as condições tem tido o seu romancista. Deixae que o mais obscuro de todos seja o do clero. Pouco perdereis com isso.

O Monasticon é uma intuição quasi prophetica do passado, ás vezes intuição mais difficultosa que a do futuro.

Sabeis qual seja o valor da palavra monge na sua origem remota, na sua fórma primitiva? É o de—só e triste.

Por isso na minha concepção complexa, cujos limites não sei de antemão assignalar, dei cabida á chronica-poema, lenda ou o que quer que seja do Presbytero godo: dei-lh'a, tambem, porque o pensamento della foi despertado pela narrativa de certo manuscripto gothico, affumado e gasto do roçar dos seculos que outr'ora pertenceu a um antigo mosteiro do Minho.

O Monge de Cister, que deve seguir-se a Eurico, teve, proximamente, a mesma origem.


ajuda—novembro de 1843.




EURICO O PRESBYTERO



I

OS WISIGODOS



A um tempo toda a raça goda, soltas as redeas do governo, começou a inclinar o animo para a lascivia e suberba.

Monge de Silos: Chronicon. c. 2.


A raça dos wisigodos conquistadora das Hespanhas subjugara toda a Peninsula havia mais de um seculo. Nenhuma das tribus germanicas que, dividindo entre si as provincias do imperio dos cesares, tinham tentado vestir sua barbara nudez com os trajos despedaçados, mas esplendidos, da civilisação romana [2] soubera como os godos ajunctar esses fragmentos de purpura e ouro para se compôr a exemplo de povo civilisado. Leuwighild expulsara da Hespanha os derradeiros soldados dos imperadores gregos, reprimira a audacia dos frankos, que em suas correrias assolavam as provincias wisigothicas d'além dos Pyreneus, acabara com a especie de monarchia que os suevos tinham instituido na Gallecia e expirara em Toletum, depois de ter estabelecido leis politicas e civis e a paz e ordem publicas nos seus vastos dominios, que se estendiam de mar a mar e, ainda, transpondo as montanhas da Vasconia, abrangiam uma grande porção da antiga Gallia narbonense.

Desde essa epocha a distincção das duas raças, a conquistadora ou goda e a romana ou conquistada, quasi desapparecera, e os homens do norte haviam-se confundido com os do meio-dia em uma só nação, para cuja grandeza contribuira aquella com as virtudes asperas da Germania, esta com as tradições da cultura e policia romanas. As leis dos cesares, pelas quaes se regiam os vencidos, misturaram-se com as singelas e rudes instituições wisigothicas, e já um codigo unico, escripto na lingua latina, regulava [3] os direitos e deveres communs quando o arianismo, que os godos tinham abraçado abraçando o evangelho, se declarou vencido pelo catholicismo, a que pertencia a raça romana. Esta conversão dos vencedores á crença dos subjugados foi o complemento da fusão social dos dous povos. A civilisação, porém, que suavisou a rudeza dos barbaros era uma civilisação velha e corrupta. Por alguns bens que produziu para aquelles homens primitivos trouxe-lhes o peior dos males, a perversão moral. A monarchia wisigothica procurou imitar o luxo do imperio que morrera e que ella substituira. Toletum quiz ser a imagem de Roma ou de Constantinopola. Esta causa principal, ajudada por muitas outras, nascidas em grande parte da mesma origem, gerou a dissolução politica por via da dissolução moral.

Debalde muitos homens de genio revestidos da auctoridade suprema tentaram evitar a ruina que viam no futuro: debalde o clero hespanhol, incomparavelmente o mais alumiado da Europa naquellas eras tenebrosas e cuja influencia nos negocios publicos era maior que a de todas as outras classes junctas, procurou nas severas leis dos concilios, que eram verdadeiros parlamentos politicos, [4] reter a nação que se despenhava. A podridão tinha chegado ao amago da arvore, e ella devia seccar: o proprio clero se corrompeu por fim. O vicio e a degeneração corriam soltamente, rota a ultima barreira.

Foi então que o celebre Ruderico se apossou da coroa. Os filhos do seu predecessor Witiza, os mancebos Sisebuto e Ebbas, disputaram-lh'a largo tempo; mas, segundo parece dos escaços monumentos historicos dessa escura epocha, cederam por fim, não á usurpação, porque o throno gothico não era legalmente hereditario, mas á fortuna e ousadia do ambicioso soldado, que os deixou viver em paz na propria corte e os revestiu de dignidades militares. D'ahi, se dermos credito a antigos historiadores, lhe veiu a ultima ruina na batalha do rio Chryssus ou Guadalete, em que o imperio gothico foi anniquilado.

No meio, porém, da decadencia dos godos algumas almas conservavam ainda a tempera robusta dos antigos homens da Germania. Da civilisação romana ellas não haviam acceitado senão a cultura intellectual e as sublimes theorias moraes do christianismo. As virtudes civís e, sobretudo, o amor da patria tinham nascido para os godos [5] logo que, fixando o seu domicilio nas Hespanhas, possuiram de paes a filhos o campo agricultado, o lar domestico, o templo da oração e o cemiterio do repouso e da saudade. Nestes corações, onde reinavam affectos ao mesmo tempo ardentes e profundos, porque nelles a indole meridional se misturava com o caracter tenaz dos povos do norte, a moral evangelica revestia esses affectos d'uma poesia divina, e a civilisação ornava-os de uma expressão suave, que lhes realçava a poesia. Mas no fim do seculo septimo eram já bem raros aquelles em quem as tradições da cultura romana não haviam subjugado os instinctos generosos da barbaria germanica e a quem o christianismo fazia ainda escutar o seu verbo intimo, esquecido no meio do luxo profano do clero e da pompa insensata do culto exterior. Uma longa paz com as outras nações tinha convertido a antiga energia dos godos em alimento das dissensões intestinas, e a guerra civil, gastando essa energia, havia posto em logar della o habito das traições covardes, das vinganças mesquinhas, dos enredos infames e das abjecções ambiciosas. O povo, esmagado debaixo do peso dos tributos, dilacerado pelas luctas dos bandos civis, prostituido [6] ás paixões dos poderosos, esquecera completamente as virtudes guerreiras de seus avós. As leis de Wamba e as expressões de Erwig no duodecimo concilio de Toletum revelam quão fundo ía nesta parte o cancro da degeneração moral das Hespanhas. No meio de tantos e tão duros vexames e padecimentos, o mais custoso e aborrecido de todos elles para os afeminados descendentes dos soldados de Theoderik, de Thorsmund, de Theudes e de Leuwighild era o vestir as armas em defensão daquella mesma patria que os heroes wisigodos tinham conquistado para a legarem a seus filhos, e a maioria do povo preferia a infamia que a lei impunha aos que recusavam defender a terra natal aos riscos gloriosos dos combates e á vida fadigosa da guerra.

Tal era, em resumo, o estado politico e moral da Hespanha na epocha em que aconteceram os sucessos que vamos narrar.



II

O PRESBYTERO



Sublimado ao grau de presbytero.... quanta brandura, qual caridade fosse a sua o amor de todos lh'o demonstrava.

Alvaro de Cordova: Vida de S. Eulogio c. 1.


No reconcavo da bahia que se encurva ao oeste do Calpe, Carteia, a filha dos phenicios, mira ao longe as correntes rapidas do estreito que divide a Europa da Africa. Opulenta outr'ora, os seus estaleiros tinham sido famosos antes da conquista romana, mas apenas restam vestigios delles; as suas muralhas [8] haviam sido extensas e solidas, mas jazem desmoronadas; os seus edificios foram cheios de magnificencia, mas cahiram em ruinas; a sua povoação era numerosa e activa, mas rareiou e tornou-se indolente. Passaram por lá as revoluções, as conquistas, todas as vicissitudes da Iberia durante doze seculos, e cada vicissitude dessas deixou ahi uma pégada de decadencia. Os curtos annos d'explendor da monarchia wisigothica tinham sido para ella como um dia formoso d'inverno, em que os raios do sol resvalam pela face da terra sem a aquecerem, para depois vir a noite, humida e fria como as que a precederam. Debaixo do governo de Witiza e de Ruderico a antiga Carteia é uma povoação decrepita e mesquinha, á roda da qual estão espalhados os fragmentos da passada opulencia e que, talvez, na sua miseria, apenas nas recordações que lhe suggerem esses farrapos de louçainhas juvenis acha algum refrigerio ás amarguras da malfadada velhice.

Não!—Resta-lhe ainda outro: a religião do Christo.

O presbyterio, situado no meio da povoação, era um edificio humilde, como todos os que ainda subsistem alevantados pelos godos sobre o sólo da Hespanha. Cantos [9] enormes sem cimento alteiam-lhe os muros, cobre-lhe o ambito tecto achatado, tecido de grossas traves de carvalho sobpostas ao ténue colmo: o seu portal profundo e estreito presagia de certo modo a mysteriosa portada da cathedral da idade-média: as suas janellas, por onde a claridade, passando para o interior, se transforma em tristonho crepusculo, são como um typo indeciso e rude das frestas que, depois, alumiaram os templos edificados no decimo quarto seculo, através das quaes, coada por vidros de mil cores, a luz ia bater melancholica nos alvos pannos dos muros gigantes e estampar nelles as sombras das columnas e arcos enredados das naves. Mas se o presbyterio wisigothico, no escaço da claridade, se approxima do typo christão d'architectura, no resto revela que ainda as idéas grosseiras do culto de Odin não se tem apagado de todo nos filhos e netos dos barbaros, convertidos ha tres ou quatro seculos á crença do crucificado.

O presbytero Eurico era o pastor da pobre parochia de Carteia. Descendente de uma antiga familia barbara, gardingo na corte de Witiza, tiuphado ou millenario do exercito wisigothico, vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos deleites da opulenta [10] Toletum. Rico, poderoso, gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado d'Hermengarda, filha de Favila, duque de Cantabria, e irman do valoroso e depois tão celebre Pelagio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso Favila não consentira que o menos nobre gardingo pusesse tão alto a mira dos seus desejos. Depois de mil provas de um affecto immenso, de uma paixão ardente, o moço guerreiro vira submergir todas as suas esperanças. Eurico era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome d'imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê-las. Desventurado, o seu coração de fogo queimou-lhe o viço da existencia ao despertar dos sonhos do amor que o tinham embalado. A ingratidão d'Hermengarda, que parecera ceder sem resistencia á vontade de seu pae, e o orgulho insultuoso do velho procer deram em terra com aquelle animo, que o aspecto da morte não sería capaz de abater. A melancholia que o devorava, consumindo-lhe as forças, fe-lo cahir em longa e perigosa enfermidade, e, quando a energia de uma constituição vigorosa o arrancou das bordas do tumulo, semelhante ao anjo rebelde, os [11] toques bellos e puros do seu gesto formoso e varonil transpareciam-lhe a custo através do véu de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O cedro pendia fulminado pelo fogo do céu.

Uma destas revoluções moraes que as grandes crises produzem no espirito humano se operou então no moço Eurico. Educado na crença viva daquelles tempos; naturalmente religioso porque poeta, foi procurar abrigo e consolações aos pés d'Aquelle cujos braços estão sempre abertos para receber o desgraçado que nelles vai buscar o derradeiro refugio. Ao cabo das grandezas cortesans o pobre gardingo encontrara a morte do espirito, o desengano do mundo. Ao cabo da estreita senda da cruz acharia elle, porventura, a vida e o repouso intimos? Era este problema, no qual se resumia todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor do pobre presbyterio da velha cidade do Calpe.

Depois de passar pelos differentes gráus do sacerdocio, Eurico recebera ainda de Siseberto, o predecessor de Oppas na sé de Hispalis, o encargo de pastoreiar esse diminuto rebanho da povoação phenicia. O moço presbytero, legando á cathedral uma porção dos dominios que herdara junctamente com [12] a espada conquistadora de seus avós, havia reservado apenas uma parte das proprias riquezas. Era esta a herança dos miseraveis, que elle sabia não escaceiarem na quasi solitaria e meia arruinada Carteia.

A nova existencia d'Eurico tinha modificado, porém não destruido o seu brilhante caracter. A maior das humanas desventuras, a viuvez do espirito, abrandara, pela melancholia, as impetuosas paixões do mancebo e apagara nos seus labios o riso do contentamento, mas não podera desvanecer no coração do sacerdote os generosos affectos do guerreiro, nem as inspirações do poeta. O templo havia sanctificado aquelles, moldando-os pelo evangelho, e tornado estas mais solemnes, alimentando-as com as imagens e sentimentos sublimes estampados nas paginas sacrosanctas da Biblia. O enthusiasmo e o amor tinham resurgido naquelle coração que parecera morto, mas transformados; o enthusiasmo em enthusiasmo pela virtude; o amor em amor dos homens. E a esperança? Oh, a esperança, essa é que não renascera!



III

O POETA



Nenhum de vós ouse reprovar os hymnos compostos em louvor de Deus.

Concilio de Toledo IV. can. 13.


Muitas vezes, pela tarde, quando o sol, transpondo a bahia de Carteia, descia affogueiado para a banda de Mellaria, dourando com os ultimos resplendores os cimos da montanha pyramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a fluctuante stringe o presbytero Eurico, encaminhando-se para [14] os alcantis aprumados á beira-mar. Os pastores que o encontravam, voltando ao povoado, diziam que, ao passarem por elle e ao saudarem-no, nem sequer os escutava e que dos seus labios semi-abertos e tremulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas, semelhante ao ciciar da aragem pelas ramas da selva. Os que lhe espreitavam os passos, nestes largos passeios da tarde, viam-no chegar ás raizes do Calpe, trepar aos precipicios, sumir-se entre os rochedos e apparecer, por fim, lá ao longe, immovel sobre algum pincaro requeimado pelos soes do estio e poido pelas tempestades do inverno. Ao lusco-fusco, as amplas pregas da stringe d'Eurico, branquejando movediças á mercê do vento, eram o signal de que elle estava lá, e, quando a lua subia ás alturas do céu, esse alvejar de roupas tremulas durava, quasi sempre, até que o planeta da saudade se atufava nas aguas do Estreito. D'ahi a poucas horas, os habitantes de Carteia que se erguiam para os seus trabalhos ruraes antes do alvorecer, olhando para o presbyterio, viam, através dos vidros corados da solitaria morada de Eurico, a luz da lampada nocturna que esmorecia, desvanecendo-se na claridade matutina. Cada qual tecia então sua novella [15] ajudado pelas crenças da superstição popular: artes criminosas, tracto com o espirito mau, penitencia de uma abominavel vida passada e, até, a loucura, tudo serviu successivamente para explicar o proceder mysterioso do presbytero. O povo rude de Carteia não podia entender esta vida d'excepção, porque não percebia que a intelligencia do poeta precisa de viver n'um mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites.

Mas Eurico era como um anjo tutelar dos amargurados. Nunca a sua mão benefica deixou de estender-se para o logar em que a afflicção se assentava; nunca os seus olhos recusaram lagrymas que se misturassem com lagrymas d'alheias desventuras. Servo ou homem livre, liberto ou patrono, para elle todos eram filhos. Todas as condições se livelavam onde elle apparecia; porque, pae commum daquelles que a providencia lhe confiara, todos para elle eram irmãos. Sacerdote do Christo, ensinado pelas largas horas de intima agonia, esmagado o seu coração pela suberba dos homens, Eurico percebera, emfim, claramente que o christianismo se resume em uma palavra—fraternidade. Sabía que o evangelho é um protesto dictado por [16] Deus, para os seculos, contra as vans distincções que a força e o orgulho radicaram neste mundo de lodo, d'oppressão e de sangue; sabía que a unica nobreza é a dos corações e dos entendimentos que buscam erguer-se para as alturas do céu, mas que essa superioridade real é exteriormente humilde e singela.

Pouco a pouco, a severidade dos costumes do pastor de Carteia e a sua beneficencia, tão meiga, tão despida das insolencias que costumam acompanhar e encher d'amargor para os miseraveis a piedade hypocrita dos felizes da terra; essa beneficencia que a religião chamou caridade, porque a linguagem dos homens não tinha palavra que exprimisse rigorosamente um affecto revelado á terra pela victima do Calvario; essa beneficencia que a gratidão geral recompensava com amor sincero tinha desvanecido gradualmente as suspeitas odiosas que o proceder extraordinario do presbytero suscitara a principio. Emfim, certo domingo em que, tendo aberto as portas do templo, e havendo já o psalmista entoado os canticos matutinos, o ostiario buscava cuidadoso o sacerdote, que parecia ter-se esquecido da hora em que devia sacrificar a hostia do cordeiro e abençoar [17] o povo, foi encontrá-lo adormecido juncto á sua lampada ainda accesa e com o braço firmado sobre um pergaminho cuberto de linhas desiguaes. Antes de despertar Eurico, o ostiario correu com os olhos a parte da escriptura que o braço do presbytero não encobria. Era um novo hymno no genero daquelles que Isidoro, o celebre bispo de Hispalis, introduzira nas solemnidades da igreja goda. Então o ostiario entendeu o mysterio da vida errante do pastor de Carteia e as suas vigilias nocturnas. Não tardou em espalhar-se na povoação e nos logares circumvizinhos que Eurico era o auctor de alguns canticos religiosos transcriptos nos hymnarios de varias dioceses, e uma parte dos quaes brevemente foi admittida na propria cathedral d'Hispalis. O caracter de poeta tornou-o ainda mais respeitado. A poesia, dedicada quasi exclusivamente entre os wisigodos ás solemnidades da igreja, sanctificava a arte e augmentava a veneração publica para quem a exercitava. O nome do presbytero começou a soar por toda a Hespanha, como o de um successor de Draconio, de Merobaude e de Orencio.

Desde então ninguem mais lhe seguiu os passos. Assentado nos alcantis do Calpe,vagabundo [18] pelas campinas vizinhas ou embrenhado pelas selvas sertanejas, deixaram-no tranquillo embalar-se nos seus pensamentos. Na conta de inspirado por Deus, quasi na de propheta, o tinham as multidões. Não gastava elle as horas que lhe sobejavam do exercicio de seu laborioso ministerio n'uma obra do Senhor? Não deviam esses hymnos da soledade e da noite derramar-se como um perfume ao pé dos altares? Não completava Eurico a sua missão sacerdotal, revestindo a oração das harmonias do céu, estudadas e colhidas por elle no silencio e na meditação? Mancebo, o numeroso clero das parochias vizinhas considerava-o como o mais veneravel entre os seus irmãos no sacerdocio, e os velhos procuravam na sua fronte, quasi sempre carregada e triste, e nas suas breves mas eloquentes palavras o segredo das inspirações e o ensino da sabedoria.

Mas, se os que o acatavam como um predestinado soubessem quão negra era a predestinação do poeta, porventura que essa especie de culto de que o cercavam se converteria em compaixão ou antes em terror. Os hymnos tão suaves, tão cheios d'uncção, tão intimos, que os psalmistas das cathedraes de [19] Hespanha repetiam com enthusiasmo eram como o respirar tranquillo do somno da madrugada que vem depois de arquejar e gemer de pesadello nocturno. Rapido e raro passava o sorrir nas faces de Eurico; profundas e indeleveis eram as rugas da sua fronte. No sorriso reverberava o hymno pio, harmonioso, sancto dessa alma, quando, alevantando-se da terra, se entranhava nos sonhos de um mundo melhor. Ás rugas, porém, da fronte do presbytero, semelhantes ás vagas varridas pelo noroeste, respondia um canto lugubre de colera ou desalento, que rebramia lá dentro, quando a sua imaginação, cahindo, como a aguia ferida, das alturas do espaço, se rojava pela morada dos homens. Era este canto doloroso e tetrico, o qual lhe transsudava do coração em noites não dormidas, na montanha ou na selva, na campina ou no estreito aposento, que elle derramava em torrentes de amargura ou de fel sobre pergaminhos que nem o ostiario nem ninguem tinha visto. Estes poemas, em que palpitava a indignação e a dor de um animo generoso, eram o Gethsemani do poeta. Todavia, os virtuosos nem sequer o imaginavam, porque não perceberiam como, tranquilla a consciencia e repousada a vida, um [20] coração póde devorar-se a si proprio, e os maus não criam que o sacerdote, embebido unicamente em suas esperanças credulas, em suas cogitações d'além do tumulo, curasse dos males e crimes que roíam o imperio moribundo dos wisigodos; não criam que tivesse um verbo de colera para amaldicçoar os homens aquelle que ensinava o perdão e o amor. Era por isto que o poeta escondia as suas terriveis inspirações. Monstruosas para uns, objecto de ludibrio para outros, n'uma sociedade corrupta, em que a virtude era egoista e o vicio incredulo, ninguem o escutara ou, antes, ninguem o entenderia.

Levado á existencia tranquilla do sacerdocio pela desesperança, Eurico sentira a principio uma suave melancholia refrigerar-lhe a alma requeimada ao fogo da desdita. A especie de torpor moral em que uma rapida transição de habitos e pensamentos o lançara pareceu-lhe paz e repouso. A ferida affizera-se ao ferro que estava dentro della, e Eurico suppunha-a sarada. Quando um novo affecto veio espremê-la é que sentiu que não se havia cerrado e que o sangue manava ainda, porventura, com mais força. Um amor de mulher mal correspondido a tinha aberto: o amor da patria, despertado pelos acontecimentos [21] que rapidamente succediam uns aos outros na Hespanha despedaçada pelos bandos civis, foi a mão que de novo abriu essa chaga. As dores recentes, avivando as antigas, começaram a converter pouco a pouco os severos principios do christianismo em flagello e martyrio daquella alma, que, a um tempo, o mundo repellia e chamava e que nos seus transes d'angustia sentia escripta na consciencia com a penna do destino esta sentença cruel:—nem a todos dá o tumulo a bonança das tempestades do espirito.

As scenas de dissolução social que naquelle tempo se representavam na Peninsula eram capazes de despertar a indignação mais vehemente em todos os animos que ainda conservavam um diminuto vestigio do antigo caracter godo. Desde que Eurico trocara o gardingato pelo sacerdocio, os odios civís, as ambições, a ousadia dos bandos e a corrupção dos costumes haviam feito incriveis progressos. Nas solidões do Calpe tinha reboado a desastrada morte de Witiza, a enthronisação violenta de Ruderico e as conspirações que ameaçavam rebentar por toda a parte e que a muito custo o novo monarcha ía affogando em sangue. Ebbas e Sisebuto, filhos de Witiza, Oppas, seu tio, successor de Siseberto [22] na sé de Hispalis, e Juliano, conde dos dominios hespanhoes nas costas d'Africa, do outro lado do Estreito, eram os cabeças dos conspiradores. Unicamente o povo conservava aínda alguma virtude, a qual, semelhante ao liquido transvasado por cendal delgado e gasto, escoara inteiramente atravez das classes superiores. Opprimido, todavia, por muitos generos de violencias, esmagado debaixo dos pés dos grandes que luctavam, descrera por fim da patria, tornando-se indifferente e covarde, prestes a sacrificar a sua existencia collectiva á paz individual e domestica. A força moral da nação tinha, portanto, desapparecido, e a força material era apenas um phantasma; porque, debaixo das lorigas dos cavalleiros e dos saios dos peões das hostes não havia senão animos gelados, que não podiam aquecer-se ao fogo do sancto amor da terra natal.

Com a profunda intelligencia de poeta, o Presbytero contemplava este horrivel espectaculo de uma nação cadaver e, longe do bafo empestado das paixões mesquinhas e torpes daquella geração degenerada, ou derramava sobre o pergaminho em torrentes de fel, d'ironia e de colera a amargura que lhe trasbordava do coração ou, recordando-se dos [23] tempos em que era feliz porque tinha esperança, escrevia com lagrymas os hymnos de amor e de saudade. Das elegias tremendas do Presbytero alguns fragmentos que duraram até hoje diziam assim:



IV

RECORDAÇÕES



Onde é que se escondeu enfraquecida a antiga fortaleza?

S. Eulogio: Memorial dos Sanct. liv. 3.º

Presbyterio de Carteia. Á meia noite
dos Idos de Dezembro de 748.


1


Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e tremulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tetrica.

[25] Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemiterios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sósinho, goteja das bordas das campas; em que só elle chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear nocturno affastam do campo sancto a saudade da viuva e do orpham, a desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranquillos em seus leitos macios!... em quanto os vérmes íam roendo esses cadaveres amarrados pelos grilhões da morte. Hypocritas dos affectos humanos, o somno enxugou-lhes as lagrymas!

E depois, as lousas eram já tão frias! Nos seios de um torrão humido o sudario do cadaver tinha apodrecido com elle.

Haverá paz no tumulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que ahi repousa sei eu que ha na terra o esquecimento!

Os mares pareciam naquella hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do estio, e a vaga arqueiava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, reflectia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.

E o animal que ri e chora, o rei da creação, [26] a imagem da divindade, onde é que se escondera?

Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.

Sem dúvida, o homem é forte e a mais excellente obra da creação. Gloria ao rei da natureza que tiritando geme!

Orgulho humano, qual és tu mais?—feroz, estupido ou ridiculo?

2


Não eram assim os godos do oeste quando, ora arrastando por terra as aguias romanas, ora segurando com o seu braço de ferro o imperio que desabava, imperavam na Italia, nas Gallias e nas Hespanhas, moderadores e arbitros entre o Septemtrião e o Meio-dia:

Não era assim, quando o velho Theoderik, semelhante ao urso feroz da montanha, combatia nos campos catalaunicos rodeiado de tres filhos contra o terrivel Attila e ganhava no seu ultimo dia a sua ultima victoria:

Quando a larga e curta espada de dous gumes se convertera em fouce de morte nas [27] mãos dos godos, e diante della retrocedia a cavallaria dos gépidas, e os esquadrões dos hunos vacillavam, dando roucos gritos d'espanto e terror.

Quando as trevas eram mais cerradas e profundas viam-se á claridade das estrellas relampagueiar as armas dos hunos, volteiando em roda dos seus carros, que lhes serviam de vallos. Como o caçador espreita o leão tomado no fojo, os wisigodos os vigiavam, esperando o romper da alvorada.

Lá, o sopro gelado da noite não fazia confranger nossos avós debaixo das armaduras. Lá, a neve era um leito como outro qualquer, e o rugir do bosque, debatendo-se nas azas da tempestade, era uma cantilena de repouso.

O velho Theoderik cahira atravessado por uma frecha despedida pelo ostrogodo Handags, que com os da sua tribu combatia pelos hunos.

Os wisigodos viram-no, passaram ávante e vingaram-no. Ao pôr do sol, gépidas, ostrogodos, scyros, burgundos, thuringios, hunos, misturados uns com outros, tinham mordido a terra catalaunica, e os restos da innumeravel hoste d'Attila, encerrados no seu acampamento fortificado, preparavam-se para [28] morrer; porque Theoderik jazia para sempre, e o frankisk dos wisigodos era vingador e inexoravel.

O romano Aecio teve, porém, piedade d'Attila e disse aos filhos de Theoderik:—ide-vos, porque o imperio está salvo.

E Thorsmund, o mais velho, perguntou a seus dous irmãos Theoderik e Friederik:—está acaso vingado o sangue de nosso pae?

De sobejo o estava elle! Ao apparecer do dia, por quanto os olhos podiam alcançar, não se viam senão cadaveres.

E os wisigodos deixaram entregues a si os romanos, que, desde então, não souberam senão fugir diante d'Attila.

Quem contará, porém, as victorias de nossos avós durante tres seculos de gloria? Quem poderá celebrar o esforço d'Eurik, de Theudes, de Leuwighild; quem saberá todas as virtudes de Rekkáred e de Wamba?

Mas, em qual coração resta hoje virtude e esforço no vasto imperio d'Hespanha?

3


Era, pois, n'uma destas noites como a que desceu do céu depois do desbarato dos hunos; era n'uma destas noites em que a [29] terra, envolta no seu manto d'escuridade, se povôa de terrores incertos; em que o sussurro do pinhal é como um coro de finados, o despenho da torrente como um ameaçar d'assassino, o grito da ave nocturna como uma blasphemia do que não crê em Deus.

Nessa noite fria e humida, arrastado por agonia intima, vagava eu ás horas mortas pelos alcantis escalvados das ribas do mar e enxergava ao longe o vulto negro das aguas balouçando-se no abysmo que o Senhor lhes deu para perpetua morada.

Por cima da minha cabeça passava o norte agudo. Eu amo o sopro do vento, como o rugido do mar.

Porque o vento e o oceano são as duas unicas expressões sublimes do verbo de Deus, escriptas na face da terra quando ainda ella se chamava o cahos.

Depois é que surgiu o homem e a podridão, a arvore e o verme, a bonina e o emmurchecer.

E o vento e o mar viram nascer o genero-humano, crescer a selva, crescer a primavera;—e passaram, e sorriram-se.

E, depois, viram as gerações reclinadas nos campos do sepulchro, as arvores derribadas no fundo dos valles seccas e carcomidas, as [30] flores pendidas e murchas pelos raios do sol do estio;—e passaram, e sorriram-se.

Que tinham elles, de feito, com essas existencias, mais passageiras e incertas que as correntezas de um e que as ondas buliçosas do outro?

4


O mundo actual nunca poderá entender plenamente o affecto que, vibrando-me dolorosamente as fibras do coração, me arrastava para as solidões marinhas do promontorio, quando os outros homens nos povoados se apinhavam á roda do lar acceso e falavam das suas mágoas infantis e dos seus contentamentos de um instante.

E que m'importa a mim isso? Virão um dia a esta nobre terra d'Hespanha gerações que comprehendam as palavras do Presbytero.

Arrastava-me para o ermo um sentimento intimo, o sentimento de haver acordado, vivo ainda, deste sonho febril chamado vida e de que hoje ninguem acorda, senão depois de morrer.

Sabeis o que é esse despertar de poeta?

É o ter entrado na existencia com um coração que trasborda d'amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajunctarem-se [31] os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso d'innocencia lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se d'elle:

É o ter dado ás palavras—virtude, amor patrio e gloria—uma significação profunda e, depois de haver buscado por annos a realidade dellas neste mundo, só encontrar ahi hypocrisia, egoismo e infamia:

É o perceber á custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se e a esperança nas cousas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo tenue que ondeia em horisonte áquem do qual está assentada a sepultura.

Este é o acordar do poeta. Depois disso, nos abysmos da sua alma só ha para mandar aos labios um sorriso de desprezo em resposta ás palavras mentidas dos que o cercam ou uma voz de maldicção desabridamente sincera para julgar as acções dos homens.

É então que para elle ha unicamente uma vida real—a intima; unicamente uma linguagem intelligivel—a do bramido do mar e do rugido dos ventos; unicamente uma convivencia não travada de perfidia—a da solidão. [32]

5


Tal era eu quando me assentei sobre as fragas; e a minha alma via passar diante de si esta geração vaidosa e má, que se crê grande e forte, porque sem horror derrama em luctas civis o sangue de seus irmãos.

E o meu espirito atirava-se para as trévas do passado.

E o sopro rijo do norte affagava-me a fronte requeimada pela amargura, e a memoria consolava-me das dissoluções presentes com a aspiração suave do formoso e energico viver d'outr'ora.

E o meu meditar era profundo como o céu, que se arqueia immovel sobre nossas cabeças; como o oceano, que, firmando-se em pé no seu leito insondavel, braceja pelas bahias e enseadas, tentando esmigalhar e desfazer os continentes.

E eu pude, emfim, chorar.

6


Que fora a vida, se nella não houvera lagrymas?

O Senhor estende o seu braço pesado de maldicções sobre um povo criminoso: o pae [33] que perdoara mil vezes converte-se em juiz inexoravel; mas, ainda assim, a Piedade não deixa de orar juncto dos degráus do seu throno.

Porque sua irman é a Esperança, e a esperança nunca morre nos céus. De lá ella desce ao seio dos máus antes que sejam precítos:

E os desgraçados na sua miseria conservam sempre olhos que saibam chorar.

A dor mais tremenda do espirito quebrantam-na e entorpecem-na as lagrymas.

O Sempiterno as creou quando nossa primeira mãe nos converteu em réprobos: ellas servem, porventura, ainda de algum refrigerio lá nas trévas exteriores, onde ha o ranger dos dentes.

Meu Deus, meu Deus!—Bemdicto seja o teu nome, porque nos déste o chorar.



V

A MEDITAÇÃO



Então os godos cahirão na guerra;
Então fero inimigo ha-de opprimi-los
Com ruinas sem conto, e o susto e a fome.

Hymno de S. Isidoro em Lucas de Tui. Chronicon liv. 3.º

No templo—Ao romper d'alva—Dia de Natal da era de 748.


1


Mais de sete seculos são passados depois que tu, oh Christo, vieste visitar a terra.

E as tuas palavras foram escutadas pelos indomaveis filhos da Gothia, e elles ajoelharam aos pés da cruz.

Era que nessas palavras divinas havia uma poesia celeste, a qual as almas rudes mas [35] virgens do septemtrião sentiam casar-se com as suas primitivas virtudes.

Tu evangelisavas a liberdade e condemnavas todo o genero de tyrannia: tu restituias ao valor a sua generosidade, á generosidade a sua modestia; tu revelavas inauditos mysterios no esforço do morrer: a constancia dos teus martyres escurecia a dos nossos guerreiros quando, debaixo do punhal de inimigo victorioso, recusavam confessar-se vencidos.

Tu convertias o amor, esse sentimento delicioso, até então limitado ao goso material da mulher, em um grande e sublime affecto: alargavas o ambito do coração por toda a terra, por tudo quanto nella vive e respira, e davas-lhe para conquistar todas as existencias dos céus.

A generosidade, o esforço e o amor, ensinaste-os tu em toda a sua sublimidade: só nas almas dos barbaros estavam elles em germen. Não para os romanos corrompidos, mas para nós, os selvagens septemtrionaes, era o christianismo. Para estes o evangelho assemelhava-se ao sol que rompe d'além das serras e que illumina, aquece e alegra; para os escravos abjectos dos cesares assemelhava-se ao sol mergulhando-se no mar, que só [36] deixa nos campos escuridão, frialdade e tristeza.

Por isso, emquanto elles voltavam as costas á tua cruz ou a lançavam d'envolta com os idolos nos seus mesquinhos lararios, nós quebravamos no fundo das selvas ou no topo das montanhas as imagens d'Odin, de Thor e de Freda e corriamos a abraçarmo-nos com ella.

Tem compaixão de nós, oh Christo: lembra-te de que os ossos dos que assim o fizeram ainda não são inteiramente cinzas debaixo das lousas; porque só quatro seculos tem passado por cima delles.

2


Quem é hoje christão e godo nesta nossa terra d'Hespanha?

Uma geração degenerada pisa os restos d'heroes: homens sem crença, blasphemos ou hypocritas, succederam aos que criam na grandeza moral do genero-humano e na providencia de Deus.

D'antes, os principes do povo eram os capitães das hostes: a espada dos reis a primeira que se tingia no sangue dos inimigos da patria.

[37] D'antes, o sacerdote era o anjo da terra: os que passavam curvavam-se para beijar a fimbria da sua stringe; porque a paz e a esperança entravam em todas as moradas sobre que desciam as bençams delle.

D'antes, o juiz era o pae do opprimido, o tribunal o abrigo do innocente, a justiça o nervo do imperio gothico.

D'antes, nos concelhos dos prelados, dos nobres, dos homens livres as leis íam buscar a sancção da sabedoria e afferir-se pela utilidade commum. Lá, o rei sabía que o poder lhe vinha de Deus e da vontade dos godos, que o sceptro era cajado de pastor, não cutello d'algoz, e a coroa uma carga pesada, não uma aureola de vangloria.

Hoje, nos paços de Toletum só retumba o ruido das festas, os frankos e os vasconios talam as provincias do norte, e a espada dos guerreiros só reluz nas luctas civís.

Hoje, os principes na embriaguez dos banquetes esqueceram-se das tradições d'avós; esqueceram-se de que era aos capitães das hostes da Germania que os romanos imbelles davam o nome de reis.

Hoje, a prostituição entrou no templo do Crucificado: os claustros das cathedraes velam com o seu manto de pedra as abominações [38] da torpeza, e as mãos do sacerdote deixam muitas vezes humedecida a tela que veste os altares com vestigios do sangue derramado covarde e vilmente.

Hoje, a cubiça assentou-se no logar da equidade: o juiz vende a consciencia no mercado dos poderosos, como as mulheres de Babylonia vendiam a pudicicia nas praças publicas aos que passavam, diante da luz do dia.

Hoje, a espada substituiu o conselho dos prelados, dos nobres e dos homens livres: a coroa é uma conquista, a lei uma vontade do deshonrado vencedor de pelejas domesticas, a liberdade uma palavra mentida.

Imperio d'Hespanha, imperio d'Hespanha! porque foram os teus dias contados?

3


O sol oriental que ora bate ridente no pavimento da igreja afflige a minha alma, porque me parece que, alumiando esta terra condemnada, se assemelha a homem cruel que viesse dar uma risada juncto ao leito do moribundo.

Porque te havia eu de amar, oh sol, se tu és o inimigo dos sonhos do imaginar; se [39] tu nos chamas á realidade, e a realidade é tão triste?

Pela escuridão da noite, nos logares ermos e ás horas mortas do alto silencio a phantasia do homem é mais ardente e robusta.

É então que elle dá movimento e vida aos penhascos, voz e entendimento ás selvas que se meneiam e gemem á mercê da brisa nocturna.

É então que elle collige as suas recordações; une, parte, transmuda as imagens das existencias que viu passar ante si e estampa nas sombras que o rodeiam um universo transitorio, mas para elle real.

E é bello esse mundo de phantasmas aereos, por entre cujos labios descorados não transpiram nem perjurio nem dobrez e a cujos olhos sem brilho não assoma o reflexo de animos pervertidos.

Ahi ha o repouso, a paz e a esperança que desappareceram da terra; porque o mundo das visões cria-o a mente pura do poeta: ella dá corpo e vulto ao que já só é ideal, e o passado, deixando cahir o seu immenso sudario, ergue-se em pé e, pondo-se diante do que medita, diz-lhe:—aqui estou eu!

E este o compara com o presente e recúa d'involuntario terror:

[40] Porque o cadaver que se alevanta do pó é formoso e sancto, e o presente que vive e passa e sorri é horrendo e maldicto.

E o poeta atira-se chorando ao seio do cadaver e responde-lhe:—esconde-me tu!

É lá que esta alma, arida como a urze, sente, quando ahi se abriga, refrescá-la um como orvalho do céu.



VI

SAUDADE



Christo!—dá-me o perdão; dá-me remedio;
Que entre tão vario mal fraqueia a mente!

Eugenio Toledano: Opusculos—XI.

Na Ilha-verde. Ao pôr do sol das
kalendas de abril da era de 749.


1


O mar estava tranquillo, e o ar puro e diaphano. As costas d'Africa fronteiras, lá na extremidade do horisonte, pareciam uma orla escura bordada no manto azul do firmamento.

A aragem do norte encrespava suavemente a superficie das aguas: as ondas vinham espraiar-se preguiçosas no areial da bahia.

[42] O barqueiro Ranimiro dormia na sua barca amarrada na foz do Palmonio. Uma saudade indizivel attrahia-me para o mar.

Saltei na barca; o ruido que fiz despertou Ranimiro.—«Ao largo»—disse-lhe eu. Empunhou os remos, e partimos.

«Para onde, Presbytero?»—perguntou o barqueiro, depois de vogar alguns momentos em silencio.

«Quero respirar o ar puro e fresco da tarde; mais nada:—repliquei.—Leva-me para onde te approuver.»

—Se vos parece—tornou Ranimiro—rodeiaremos a Ilha Verde, entraremos no canal, e saltareis na margem. Pelo tempo que vai, ella estará agora esmaltada de verdura e boninas.»

Calei-me: o barqueiro tomou por approvação o meu silencio. Voltando a proa para poente, corremos ao largo da ilha e, rodeiando a sua margem occidental, abicámos em terra pelo lado da enseada que a separa do continente.

Ranimiro não se enganara: como uma tapeçaria riquissima lançada ao som das aguas, a superficie da ilha agitava-se trémula com a aragem da terra, que curvava brandamente as flores e as folhinhas lanceoladas da relva.

[43] Assentado á sombra de uma rocha que formava um promontoriosinho do lado do sul, lancei os olhos em volta até onde se descubria o horisonte. Lá, no extremo do Estreito para a banda do mar interior, viam-se na ponta da Africa os cimos das torres de Septum fronteiras aos cerros escalvados do Calpe. De Septum para o occidente as costas africanas contrastavam nas suas ondulações suaves com a penedia aspera das ribas hispanicas, e, confrangido entre os dous continentes, o mar balouçava-se resplandecente com os raios já inclinados do sol.

De roda de mim a atmosphera estava impregnada de um halito perfumado: era a natureza que sorria affagada pela primavera. As aves aquaticas redemoinhavam nos ares ou pousavam sobre as aguas e pareciam, nos seus vôos incertos, ora vagarosos, ora rapidos, folgarem com os primeiros dias da estação dos amores.

Uma melancholia suave se me erguia lentamente no coração, debaixo daquelle céu puro, n'aquella atmosphera balsamica, ante aquelles horisontes saudosos. As lagrymas rebentaram-me involuntariamente dos olhos.

Era feliz neste momento, porque repousava d'amarguras. Olhei para a barca: Ranimiro [44] adormecera de novo á proa. Repousavam bem perto um do outro a materia e o espirito.

Bemaventurado, pensei eu comigo, aquelle em quem os affagos de uma tarde serena de primavera no silencio da solidão produzem o torpor dos membros; porque nessa alma dormem profundamente as dores no meio do ruido da vida!

E este pensamento trouxe-me pouco e pouco á memoria as tempestades do passado. Ai de mim! Logo se me enchugaram as lagrymas, porque eram de consolação, e essa lembrança as estancou!

2


Porque não adormeço eu, como o rude barqueiro, ao murmurio das vagas somnolentas, ao sussurro da brisa do norte?

Porque mulher barbara não entendeu o que valia o amor d'Eurico; porque velho orgulhoso e avaro sabía mais um nome de avós do que eu, e porque nos seus cofres havia mais alguns punhados d'ouro do que nos meus.

As mãos imbelles de uma donzella e de um velho esmagaram e despedaçaram o coração [45] de um homem, como os caçadores covardes assassinam no fojo o leão indomavel e generoso.

E, todavia, este coração sentia a voz da consciencia pregoar-lhe largos destinos! Porque não emmudeceu essa voz quando do portico do templo lancei ao mundo a maldicção da despedida?

Porque me lembra com saudade, aqui, a estas horas, o tempo das minhas esperanças?

É porque o viver é o éculeo do espirito: a alma estorce-se como agonisante no meio dos mais incomportaveis tormentos, sem nunca poder expirar, e os seus affectos profundos são com ella; não lhes é dado o morrer.

Paz e esquecimento, oh meu Deus!

3


Os raios derradeiros do sol desappareceram: o clarão avermelhado da tarde vai quasi vencido pelo grande vulto da noite, que se alevanta do lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e luminosa surge a meus olhos, oh Hermengarda, semelhante á apparição do anjo da esperança nas trevas do condemnado.

E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe [46] a frente a coroa das virgens; sobe-lhe ao rosto a vermelhidão do pudor; o amiculo alvissimo da innocencia, fluctuando-lhe em volta dos membros, esconde-lhes as fórmas divinas, fazendo-as, porventura, suspeitar menos bellas que a realidade.

É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade: mas, em sonhos ou desenhada no vapor do crepusculo, tu não és para mim mais do que uma imagem celestial; uma recordação indecifravel; um consolo e ao mesmo tempo um martyrio.

Não eras tu emanação e reflexo do céu? Porque não ousaste, pois, volver os olhos para o fundo abysmo do meu amor? Verias que esse amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é immenso, como o ideal, que elle comprehende; eterno, como o seu nome, que nunca perece.

Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! adorava-te só no sanctuario do meu coração, emquanto precisava de ajoelhar ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o melhor dos dous templos?

Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.

Porque vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a cruz ensanguentada [47] do Calvario; quando a mão inexoravel do sacerdocio soldou a cadeia da minha vida ás lageas frias da igreja; quando o primeiro passo alèm do limiar desta será a perdição eterna?

Mas, ai de mim! essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do espaço está estampada unicamente em minha alma e reflecte-se no céu do oriente através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes queimou as lagrymas.

Tu, Hermengarda, recordares-te?! Mentira!... Crês que morri, ou, porventura, nem isso crês; porque para creres era preciso lembrares-te, e nem uma só vez te lembrarás de mim!

Lá, no tumulto dos cortezãos, onde o amor é calculo ou sentimento grosseiro, terás achado quem te chame sua, quem te aperte entre os braços, quem tivesse para dar a teu pae o preço do teu corpo e te comprasse como alfaia preciosa para serviço domestico. O velho estará contente, porque trocou sua filha por ouro.

A isto chama prudencia o mundo estupido e ambicioso; a isto, que não é mais do que uma prostituição abençoada sacrilegamente perante as aras sacrosanctas.

[48] Oh, quantas vezes esse pensamento repugnante me tem feito vagueiar louco pelas montanhas, uivando como o lobo esfaimado e tentando despedaçar os rochedos com as mãos, d'onde me goteja o sangue!

E tu folgas e ris! Oxalá nunca saibas quão intenso e atroz é o meu tormento, que devo velar diante dos homens debaixo de aspecto tranquillo, como se, em vez de martyrio, elle fosse um abominavel crime.

4


E quem te disse, Presbytero, que o teu amor não era um crime?

Tens razão, consciencia! Quando aos pés do veneravel Siseberto o gardingo Eurico jurou que abandonava o mundo devia despir as paixões que do mundo trouxera.

A luz brilhante d'affeições e esperanças a que vivia e que me povoava o coração de felicidade devia apagar-se então, como a lampada do templo ao amanhecer; porque eu voltava-me para o céu, buscando a luz do Senhor.

Mas o sol, apenas nasceu para mim, logo desappareceu no occaso, e os que me creem alumiado mal pensam que vivo em trevas!

[49] As minhas paixões não podiam morrer, porque eram immensas, e o que é immenso é eterno.

E assim, nem ouso pedir a paz do sepulchro; porque para mim não haveria paz, senão no anniquilamento!

O anniquilamento! Que mal te fiz eu, oh meu Deus, para me não deixares cá dentro mais que uma idéa risonha, mais que um desejo capaz de encher o abysmo da minha desventura? Que mal te fiz eu para que esse desejo, essa idéa seja a que unicamente resta ao precíto que se revolve em perpetuas angustias?

Mas para mim, como para elle, tal pensamento é vão e mentido! Eternidade, eternidade, a alma do homem está encerrada e captiva no illimitado do teu imperio!



VII

A Visão



No espelho da visão está a segurança da verdade.

Codigo wisigothico—I-1-2.

Presbyterio. Antemanhan. Oito dos idos d'abril da era de 749.


1


O somno ou a vigilia, que me importa esta ou aquelle? As horas da minha vida são quasi todas dolorosas; porque a imaginação do homem não póde dormir.

Para o povo, ignorante e impiamente credulo, a noite é cheia de terrores; em cada folha que range na selva elle ouve um gemido de alma que vagueia na terra; em [51] cada sombra de arvore solitaria que se balouça com a aragem sente o mover de um phantasma; as exhalações dos bréjos são para elle luz de demonios, alumiando folgares de feiticeiras.

Mas, quando jaz no leito do repouso, o seu dormir é tranquillo. Ao cruzar os umbraes domesticos esses terrores sumiram-se com os objectos que os geraram. A sua alma parece despir-se da phantasia grosseira, como o corpo se despe da stringe aspera que lhe resguarda os membros.

Não assim eu. Quando as palpebras, cerrando-se, m'escondem o mundo das realidades, os olhos do espirito volvem-se para o mundo das existencias ideaes. Ás vezes, a felicidade e a esperança vem consolar-me então; muitas mais, porém, os sonhos maus me perseguem; e por bem alto preço me saem os instantes de ventura transitoria trazidos por visões consoladoras.

Esta foi para mim uma noite cruel. Ainda o suor frio que me corria da fronte se não seccou; ainda o coração parece mal caber no peito, e o pulso bate desordenado e violento.

Terribilissimos foram os sonhos que Deus mandou ao Presbytero; mas, porventura, mais terrivel é a sua significação.

[52] Diz-me voz intima que esse doloroso espectaculo a que assistiu a minha alma é, oh Hespanha, o mysterio dos teus destinos.

E esta foi a visão:

2


Eram as horas das trevas profundas. Sem saber como, achava-me no viso mais alto do Calpe: traspassava-me a medúla dos ossos o vento frio da noite, e parecia-me que os membros hirtos se me haviam pregado no topo da penedia.

Olhava fito ante mim, e os meus olhos rompiam a escuridão do horisonte, como se a luz do sol o illuminasse.

O espectaculo maravilhoso que se passava nesse espaço insondavel fazia-me erriçar os cabellos, que o norte me açoutava com o sopro gelado.

Eis o que eu vi nessa hora de agonia, depois de estar alli alguns não sei se instantes ou seculos.

O mar cessou de agitar-se e rugir, semelhante ao metal fervente destinado para a feitura d'estatua colossal que resfriasse de subito em vasta caldeira.

E era horribilissimo ver convertido em [53] cadaver, de todo immovel e mudo, o oceano; aquelle oceano que ha mais de quarenta seculos nem um só dia deixou de revolver-se e bramir em torno dos continentes, como o tigre ao redor da rez que jaz morta.

O sibillar das rajadas tambem cessou completamente. Parado sobre a face da terra, o ar era semelhante ao lençol do finado a quem recalcaram a gleba que o cobre, frio, humido, pesado, sem ranger, sem movimento, cosido sobre o peito, onde acabou o bater do coração e o arfar compassado dos pulmões.

Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuissima foi avultando pouco a pouco, derramando-se pelo horisonte e repintando a abobada immensa dos céus.

Depois, esse clarão sinistro reverberou na terra: as cimas agudas, dentadas, tortuosas, alvacentas das fragas marinhas tinham-se abatido e livelado, como os cerros informes de neve amontoada, que, derretidos nos primeiros dias do estio, vão, despenhando-se, formar um lago chão e morto na caldeira mais funda do valle fechado.

Tudo a meus pés era um plano uniforme, ermo, affogueiado, como a atmosphera [54] que pesava em cima delle: e, além, jazia o cadaver do mar.

Eu, o Silencio e a Solidão eramos quem estava ahi.

3


Subitamente, naquelle vasto horisonte, até então puro na sua luz horrenda, dous castellos de nuvens cerradas e negras começaram a alevantar-se, um da banda da Europa, outro do lado d'Africa.

Os bulcões conglobados corriam um para o outro e multiplicavam-se, vomitando novos castellos de nuvens, que se diffundiam, fluctuando ennoveladas com fórmas incertas.

E aquellas montanhas vaporosas e negras rasgaram-se d'alto a baixo em fendas semelhantes a algares profundos, e os seus fragmentos informes e cambiantes vacillavam tremulos em ascensão diagonal para as alturas do céu.

Ao approximarem-se, os dous exercitos de nuvens prolongaram-se em frente um do outro e toparam em cheio. Era uma verdadeira batalha.

Como duas vagas encontradas, no meio de grande procella, que, tombando uma sobre a outra, se quebram em cachões que espadanam [55] lençoes de escuma para ambos os lados, antes que a menos violenta se incorpore na mais possante, assim aquellas nuvens tenebrosas se despedaçavam, derramando-se pela immensidão da abobada affogueiada.

Então, pareceu-me ouvir muito ao longe um choro sentido misturado com gritos agudos, como os do que morre violentamente, e um tinir de ferro, como o de milhares de espadas, batendo nas cimeiras de milhares de elmos.

Mas este ruido foi-se alongando e cessou: os bulcões alevantados da banda d'Africa tinham embebido em si os que subiam da Europa, e desciam rapidamente para o lado dos campos gothicos.

Depois, sentí lá embaixo, na raiz da montanha, um rir diabolico. Olhei: o Calpe esboroava-se ao redor de mim, e os rochedos sobre que eu estava assentado vacillavam nos seus fundamentos.

Despertei. Tinha os cabellos hirtos, e o suor frio manava-me da fronte aquecida por febre ardente.

Senhor, Senhor! foste tu que déste a ler á minha alma a ultima pagina do livro eterno em que a providencia escreveu a historia do imperio godo?

[56] Contam-se cousas incriveis desses povos que assolam a Africa, chamados os arabes, e que, em nome de uma crença nova, pretendem apagar na terra os vestigios da cruz. Quem sabe se aos arabes foi confiado o castigo desta nação corrupta?

Já as nossas praias foram visitadas por elles, e para os repellir cumpriu que desembainhasse a espada o illustre Theodemiro, o ultimo guerreiro, talvez, que mereça o nome de neto dos godos.

Terra em que nasci, se o teu dia de morrer é chegado, eu morrerei comtigo. Na procella que se alevanta d'Africa deixarei submergir o meu debil esquife, sem que a esses gemidos que ouvi se vão ajunctar os meus. Que m'importa a vida ou a morte, se o padecer é eterno?



VIII

O DESEMBARQUE



E eu estava em um angulo, observando com temor.

Paulo Diacono: Vidas dos PP. Emeritenses.


DO PRESBYTERO DE CARTEIA AO DUQUE DE CORDUBA


Ao Duque Theodemiro, saude!


Quando Witiza reinava, na corte esplendida de Toletum, havia dois tiuphados que a todos serviam d'exemplo d'intima e sincera amizade. Opiniões e intentos, alegrias e tristezas eram communs para ambos. Chamava-se Theodemiro o mais velho, Eurico o mais moço. Nas suas esperanças de mancebos, [58] as Hespanhas foram-lhes, muitas vezes, limitado theatro para illusões de ambição. A gloria era o seu perpetuo sonho, e as recordações das façanhas dos antigos godos embriagavam-lhes os animos ao lembrarem-se de que as armas dos seus avós da Germania tinham brilhado victoriosas sempre sobre os membros despedaçados do imperio romano. Quando o grito da revolta soou na Cantabria as tiuphadias dos dous mais irmãos que amigos acompanhavam Witiza na expedição contra os montanhezes rebeldes e contra os frankos seus alliados. Então, n'essa guerra d'exterminio, os dous mancebos viram saciada sua sede de renome. Como os macissos de neve que se despenham das montanhas escarpadas da Vasconia, as duas tiuphadias de Theodemiro e de Eurico appareciam, ás vezes, subitamente, nos visos das serras e, apenas os primeiros raios do sol faziam reluzir as armas, semelhantes no brilho tremulo ao alvejar da geada, ei-las que pareciam rolar-se pela encosta, e, dentro de pouco, os acampamentos dos frankos e cantabros ficavam esmagados debaixo do impeto irresistivel dessas pinhas de soldados que eram arremessados sobre os inimigos por duas vontades emulas de gloria. Expulsos os estrangeiros [59] e submettidos os rebellados, a hoste real entrou victoriosa em Tárraco. O duque Favilla recebeu em triumpho os pacificadores de Cantabria, e Theodemiro e Eurico obtiveram a recompensa do que combateu pela patria, a gratidão dos seus naturaes.

Foi ahi que o destino preparou a separação dos dous guerreiros que parecia só a morte poder dividir. Favilla tinha dous filhos, Hermengarda e Pelagio. Pelagio saía apenas da infancia, mas para Hermengarda despontavam já então os risonhos dias da juventude. A sua formosura era celestial: Eurico viu-a e amou-a. Quando as tiuphadias foram chamadas a Toletum, Eurico voltou triste á terra da sua infancia. Dir-se-hia que eram os contentamentos da patria que elle trocava pelas tristezas do desterro. Debalde buscou Theodemiro apagar aquella paixão violenta no coração do seu amigo, lançando-se com elle nas festas ruidosas de uma corte dissoluta. A embriaguez dos banquetes era para Eurico tristonha; as caricias feminís, facilmente compradas e profundamente mentidas, atrás das quaes correra loucamente outr'ora, tinham-se-lhe tornado odiosas; porque o amor, com toda a sua virgindade sublime, lhe convertera em podridão asquerosa [60] os deleites grosseiros que o mundo offerece á sensualidade do homem. Theodemiro acreditara na efficacia da bruteza para matar o mais formoso dos affectos humanos; mas o amor devorou na mente de Eurico todos os outros sentimentos, como a lava candente devora tudo o que encontra, quando o vulcão a vomita, alagando a superficie da terra.

Favila veio á corte: Hermengarda acompanhava-o. Theodemiro recordar-se-ha ainda de qual foi o desfecho do amor de Eurico, que ousou dizer ao velho procer: «Dá-me por mulher tua filha.» A amizade de Theodemiro salvou então o desprezado gardingo da morte do corpo, mas não pôde salva-lo da morte da alma. Razões, rogos, lagrymas; quanto a eloquencia de affeição mais que fraterna tem de vehemencia; quantas cordas do coração sabe fazer vibrar a mão de um amigo, tudo elle tentou debalde! Não ha palavras que possam erguer um espirito que deu em terra; mão nenhuma tira sons de cordas que estalaram. Eurico ou, antes, a sua sombra, fugiu do lado de Theodemiro, e da porta do sanctuario disse-lhe um adeus eterno, como ao resto do mundo.

Mal sabía o desgraçado que n'esse adeus a sua consciencia mentia a si propria! Theodemiro, [61] tu hoje és duque de Corduba: entre os povos sujeitos ao teu imperio; entre os que abençoam a tua justiça e bondade, n'um angulo da vasta provincia da Betica, em Carteia, vive um pobre presbytero que para ti pede ao Senhor tanto o renome e o poderio quanto para si deseja a obscuridade e o esquecimento. Este presbytero é quem te escreve; quem limitou a bem poucos annos a eternidade do adeus que te dissera; é aquelle que se chamava no mundo o gardingo Eurico, aquelle de quem foste amigo, e que foi teu rival de gloria.

Duque de Corduba, não creias que o meu espirito se volte hoje para as miserias da terra, impellido por uma tardia saudade. Não! De que me serviriam o ouro, o poder e a grandeza? Para tomar um punhado desse lodo não se curvaria o Presbytero. O unico affecto eterno que, talvez, resta a este coração depurado pelo fogo ardente da desdita, o amor da patria, sentimento confuso e indefinido, mas indelevel, é quem obriga Eurico a dizer-te o logar em que veio coar gota a gota as horas aborridas da sua tormentosa existencia.

Theodemiro! Theodemiro! Um dia tremendo se approxima em que a Hespanha [62] deve ser o tumulo da raça goda. Em sonhos antevi esse dia, e, após dos sonhos, a medonha realidade ahi se me alevanta diante dos olhos. Carteia está deserta, como as demais povoações vizinhas. Apenas eu ouso demorar-me nas immediações do Calpe; porque sei, passo a passo, todas as veredas que guiam ao topo dos desfiladeiros, tendo-as regado muitas vezes com lagrymas, tendo-lhes muitas mais confiado a historia das minhas agonias. As cidades despovoam-se, e, como ellas, os campos convertem-se em ermos. Embora ainda sorriam no vecejar das searas, no florescer dos pomares, no murmurar das fontes: semelhante sorrir consterna; porque o homem desappareceu do meio desta scena formosa, e o ruido da vida converteu-se em silencio de morte.—Os arabes!—eis o unico grito que o interrompe; e esta palavra maldicta é como a peste quando passa: seguem-na o susto e o desacordo. A vileza do coração humano surge após ella em toda a hediondez do seu aspecto. O terror acabou com os mais sanctos affectos e, até, com o amor filial e paterno. Cada qual busca salvar-se a si proprio. Os netos dos nobres godos converteram-se n'um bando desprezivel de covardes egoistas.

[63] Ha tres dias, ao romper da manhan, um grande numero de velas branquejava sobre as aguas do Estreito; vinham do lado de Septum. Corremos á praia. Dentro de poucas horas entraram na bahia de Carteia, e algumas entestaram com a Ilha-Verde. Via-se distinctamente o reluzir das armas, e varios soldados que tinham ajudado a repellir os primeiros saltos dos africanos nas costas d'Hespanha reconheceram logo os trajos e as armas dos arabes. Entre estes, porém, divisavam-se muitos godos, pelas armaduras pesadas, pelos largos ferros dos frankisks e pelas stringes mais curtas que as amplas vestiduras dos filhos do Oriente. D'ahi a pouco toda a frota velejou para o lado do Calpe, e, quando anoiteceu, as faldas da montanha appareceram alumiadas por muitos fachos. Os arabes tinham desembarcado.

A anciedade era indizivel. Demudadas as faces, olhavamos uns para os outros. Elles tremiam por si: eu pela sorte da Hespanha. Mas porque entre esses que pareciam inimigos se achava tão avultado numero de godos? Esta pergunta significava a nossa derradeira esperança.

Ao entenebrecer, alguns barqueiros saíram ao largo e, vogando surdamente, foram espiar [64] a frota. Tomando os atalhos mais curtos, eu encaminhei-me sósinho para o Calpe, cujo vulto gigante, rodeiado de fachos ao sopé, negrejava no topo sobre o fundo alvacento do céu limpo de nuvens, onde a lua passava tranquilla, embargando com o seu clarão pallido o scintillar das estrellas.

Era alta noite quando cheguei á montanha. Subindo pelas quebradas, salvando precipicios, cozendo-me com as fragas tortuosas, descendo pelos leitos das torrentes, cheguei a um rochedo contiguo á planicie que das raizes da serrania vai morrer no rolo do mar, na costa oriental da bahia. Era ahi que os arabes, desamparando a frota, se haviam acampado. Comprimindo o alento, approximei-me insensivelmente de uma tenda mais vasta, alevantada juncto do penhasco a que eu chegara sem ser percebido. Por uma fenda que deixavam as telas mal unidas do pavilhão descortinei o que se passava no interior á luz das tochas que tinham nas mãos dous ethiopes, cujos rostos negros contrastavam com a brancura das suas roupas. Assentado no chão, com os braços cruzados, um arabe mancebo parecia escutar attentamente um guerreiro godo que, em pé no meio de outros dous, tinha as costas voltadas para [65] mim. Com espanto e ao mesmo tempo com alegria, percebi que se exprimia em romano rustico, o qual, d'ahi a pouco, vi que o moço arabe falava como se fosse a propria linguagem. Comecei então a escutar attentamente.

«Tarik—dizia o godo—ámanhan ao romper d'alva é necessario que todos estes penhascos empinados sobre nossas cabeças se coroem de teus soldados e que não tardes em fortificar essa estreita passagem que une o promontorio do Calpe com o resto do continente. É aqui, nestas serras inaccessiveis, que deves esperar o resto dos libertadores da Hespanha: é d'aqui que deves saír com os teus irmãos do deserto para quebrar o sceptro do tyranno Ruderico. Se a sorte das armas nos for contraria, esperaremos neste logar novos soccorros d'Africa. Septum nos fica fronteiro, e Septum entreguei-t'o eu...»

Tarik não o deixou continuar. Como o leão, pulando subitamente dos juncaes da Mauritania, o moço arabe pôs-se em pé, com o gesto colerico, e exclamou:

«Wali dos christãos! quem te fez crer que Tarik podia ser vencido? Vi em sonhos o propheta de Deus que me disse:—a Hespanha curvar-se-ha ao koran:—e Mohammed não [66] mente! Ainda sem ti, eu me teria arrojado sobre o imperio godo, e a minha lança o faria cahir a meus pés moribundo, quando Sebta me tivesse fechado as portas; quando todos vós os godos estivesseis unidos contra mim. Deus é grande, e Mohammed o seu propheta!»

As palavras violentas do arabe revelaram-me quem era o guerreiro godo. Juliano capitaneiou, como nós, uma tiuphadia na guerra cantabrica e foi valente soldado. Sabía que elle fora elevado á dignidade de conde de Septum e que ahi se cubrira de gloria, repellindo os inimigos do imperio, que já tinham tentado conquistar aquella provincia. Como e porque atraiçoou a terra natal? Odios civís o levaram a tanta infamia, segundo entendi das suas palavras. Parricida e fratricida a um tempo, busca vingar-se, talvez de bem poucos de seus irmãos, esmagando-os debaixo das ruinas da patria. A memoria deste malaventurado será reproba e maldicta das gerações remotas!

Juliano parecia querer responder ao mancebo, quando um soldado entrou com um rolo de pergaminho na mão e, entregando-o a Tarik, proferiu algumas palavras em arabe. Tarik olhou então para Juliano com um [67] sorriso e, estendendo-lhe a dextra, disse-lhe em voz baixa:

«Wali de Sebta! perdoa-me este impeto, como me tens perdoado tantos outros. Bem sei que não podes comprehender o que é a fé viva de um mosselemano na protecção de Deus: mas eu sería réu do inferno, se duvidasse um instante das promessas do Propheta. O judeu Zabulon acaba de chegar com essa carta do que vós chamaes bispo de Hispalis. Lê-a e dize-me que novas ha de Ruderico.»

Juliano desdeu o nó da carta e leu. Batia-me o coração de furor; mas procurei tranquillisar-me. Importava-me assás conhecer o que ella continha para dever prestar toda a attenção possivel ás palavras do conde Juliano.

«Ruderico—disse este, acabando de correr com os olhos o rolo de pergaminho—entregue aos banquetes e festas, não acredita que o dia da vingança amanhecesse para a Hespanha: todavia, logo que a noticia indubitavel da nossa vinda retumbar sob os tectos dourados dos paços de Toletum, elle convocará os seus numerosos soldados, as suas tiuphadias veteranas, e arremessar-se-ha contra nós; porque Ruderico é dissoluto e perverso, mas nunca foi covarde. O prudente [68] Oppas pensa, como eu, que importa fortificar-nos no Calpe. Aconselha-o a sciencia da guerra, e, se, como crente, confias no teu propheta para contar com a victoria, como capitão deves seguir os conselhos da prudencia humana. Tambem eu espero no Deus das batalhas—proseguiu o conde em tom de mofa, batendo no punho da espada;—tambem eu tenho a minha providencia; mas a aguia, quando se arroja sobre a prêa, tem já construido o seu ninho no penhasco da montanha, e as penedias do Calpe devem ser o ninho das aguias que pairam sobre o throno de Ruderico.»

Tarik ficou por alguns momentos calado e pensativo:

«Seja como te aprouver:—disse por fim.—Busca no exercito os melhores artifices arabes e com elles e com os teus godos alevanta esses vallos em que põe sua confiança o teu coração descrido.»

«Houve um tempo em que não o foi:—replicou Juliano com o accento da colera misturada de indignação e tristeza:—mas Witiza dorme debaixo d'uma lousa o somno da eternidade, e o seu assassino chama-se o rei dos godos. Elle folga e ri assentado no throno que lhe deu a traição e o perjurio. Tarik, [69] o teu propheta inspira-te em sonhos; mas a vingança é mais segura inspiração, porque é o sonho perenne do homem desperto, quando vê, assim, falhar a justiça do céu, se é que nelle ha justiça.»

Proferindo estas palavras blasphemas, Juliano saíu da tenda. Tarik bateu as palmas, e um guerreiro ethiope, cujos olhos lhe reluziam sanguineos na pretidão do rosto, entrou com os braços cruzados e ficou immovel e curvado diante de Tarik. Pareceu-me que este lhe ordenava o que quer que fosse; mas falava na sua linguagem barbara, e não o pude entender.

Sabía assás qual era a situação e quaes os accidentes do solo de todos os desvios do Calpe para perceber que a minha demora naquelles sitios podia tornar-me impossivel a saída. A defensa do promontorio consistia unicamente em cortar com vallos e cavas o isthmo que o liga ao continente. Juliano começaria, talvez, a alevantar as tranqueiras nessa mesma noite; era, portanto, necessario partir.

Quando atravessei a serra pelos trilhos mais curtos e escusos, conheci que o meu receio fora bem fundado. Parando no topo de uma penedia, donde se divisava ao redor quasi toda a montanha, vi centenares de fachos [70] que vacillavam, correndo tortuosamente pelas ladeiras, sumindo-se, tornando a apparecer, retrocedendo. O todo daquella illuminação terrivel estendia-se em volta da montanha, formando uma extensa meia lua, cujas pontas cresciam para o isthmo, ao passo que se approximavam uma da outra, estreitando o cume da serrania. Era visivel que alguem practico nas apertadas gargantas, nas sendas intrincadas do promontorio, guiava os barbaros. Convinha fugir, não porque m'importasse o morrer, mas porque, talvez, a Providencia me guiara á tenda de Tarik para que as Hespanhas fossem salvas, se é que ella não escreveu irrevogavelmente a sua condemnação no livro dos eternos designios.

Theodemiro, vê que a traição, semelhante ao veneno recentemente bebido, que gyra nas veias e ainda não apparece no aspecto, está por toda a parte e, até, penetra no sanctuario. É necessario esforço e vigilancia, já que as dissenções civís quizeram que os golpes do frankisk godo hajam de se vibrar sobre a fronte de godos que combatem ao lado do estrangeiro infiel; já que a perfidia póde abrir as portas das nossas cidades aos africanos, sem que estes tenham de passar por cima dos cadaveres de seus irmãos, para se assenhoreiarem [71] dellas. Cumpre que avises Ruderico. Em Hispalis está Oppas, e Oppas tem comsigo numerosos clientes, que, porventura, entregarão aos invasores a mais formosa e opulenta entre as povoações da Betica. Não tardará que os arabes desçam do Calpe e se derramem pelas provincias da Hespanha. Ha dous dias, em que vagueio, quasi só, nas immediações de Carteia, não se passa uma hora, sem que os navios d'Africa venham vomitar na bahia novos esquadrões de soldados. Semelhante aos éstos do mar, é rapido o seu ir e voltar. Dentro d'oito dias, bem custoso sería resistir a Tarik com todo o poder do imperio, quanto mais divididos os godos em dous bandos, um dos quaes pelejará ao lado dos inimigos.

Dir-to-hei, Duque de Corduba: tambem eu não amo Ruderico; porque a memoria de Witiza nunca morrerá no coração do seu antigo gardingo. Sei por quaes meios Ruderico subiu ao throno, que não obteria pela eleição dos godos. Mas não é a sua coroa que os filhos das Hespanhas tem hoje que defender; é a liberdade da patria; é a nossa crença; é o cemiterio em que jazem os ossos dos nossos paes; é o templo e a cruz, o lar domestico, os filhos e as mulheres, os campos [72] que nos sustentam e as arvores que nós plantámos. Para mim, de todos estes incentivos, apenas restam dous; o amor da terra natal e a crença do evangelho. No dia do combate, Eurico despirá a stringe innocente do sacerdocio e vestirá as armas para defender estes objectos queridos dos seus derradeiros affectos. Que, tambem, esses que ainda se enlaçam ás illusões e esperanças, como a hera ás ruinas, se ergam para pelejarem batalhas tremendas, porque o serão, por certo, as que nos aguardam; e oxalá que os meus tristes sonhos sejam desmentidos pelo esforço dos guerreiros godos; oxalá que não esteja para bater a derradeira hora do dominio da cruz nesta terra do occidente, regada pelo sangue de tantos martyres!

De Mellaria, aonde me acolhi com grande numero dos moradores de Carteia e dos seus arredores, continuarei as minhas correrias nocturnas para as bandas do Calpe, com os homens mais ousados que quizerem acompanhar-me, até que os arabes desçam da sua guarida, e seja inutil o vigiá-los; até que chegue o dia em que os desgraçados, como eu, achem na morte honrada das pelejas o repouso das amarguras da vida, se é que além do morrer ha o repouso do espirito.

[73]

DO DUQUE DE CORDUBA AO PRESBYTERO.


Ao Gardingo Eurico, saude!


Vives ainda Eurico! Perto de Corduba, onde existia o seu antigo irmão d'armas, o heroe da guerra cantabrica nunca teve um impulso de affecto que o levasse a revelar o mysterio do seu retiro, em que enviasse uma palavra de consolação para a saudade fraterna. Accusas de egoismo e fereza os filhos da Hespanha, e cahiste na mesma culpa: foste egoista e cruel. Não podias crer por certo que eu me houvesse esquecido de ti: larga experiencia te ensinou que as minhas affeições são duradouras e profundas. Mas aquelle que te amou tanto; aquelle que poria a vida para salvar a tua; que nunca teve contentamento ou magua que fosse para ti segredo, tractaste-o com o mesmo desprezo, com que, no teu nobre orgulho de desgraçado, tractaste o resto do mundo; e do limiar do templo disseste-lhe, talvez, o mesmo adeus de odio e despeito que disseste ao resto do genero humano.

É nos dias em que se abre para a patria uma longa carreira de desventuras, que tu [74] surges, gardingo, como a lembrança querida dos formosos dias da nossa mocidade; é na vespera de uma lucta em que se vai resolver se ha-de ser livre ou serva a terra dos godos; em que mil cogitações tristemente solemnes me assaltam o espirito e me obrigam a não me afastar de Corduba, onde incessantemente trabalho por ajunctar os valentes companheiros de nossas glorias de outr'ora; é quando a voz do dever me tem como captivo, que d'um angulo da Betica me dizes—eu vivo!—Embora! Já que não me é dado buscar-te, serás tu que virás lançar-te nos braços do teu amigo.

Sim, gardingo!—Hoje que o imperio é abalado nos seus fundamentos; que os pagãos d'Africa ameaçam derribar a cruz erguida no cimo das nossas cathedraes; hoje, tu despirás a stringe sacerdotal e cingirás de novo a deposta e esquecida espada. Em Corduba, onde se ajunctam já as tiuphadias da Betica, Eurico achará bom numero dos seus antigos guerreiros, e os mais ousados mancebos, que ora encetam a vida dos combates em defesa da patria e da fé, acceitarão com jubilo para seu capitão o homem que deixou um nome que não morrerá emquanto durar a memoria do desbarato dos [75] vasconios e francos. Na ebriedade da gloria que te espera, porventura, achará o teu pobre coração, despedaçado pelas paixões que ahi passaram, o allivio e conforto que vejo teres buscado debalde nos braços de uma piedade austera, de uma vida d'humildade e abnegação. Esta gloria será tanto maior, quanto é certo que nunca o imperio godo se viu tão perto da sua ultima ruina e que nunca foram postos a tão dura prova o esforço e a lealdade dos seus filhos.

As novas que me dás da traição do bispo d'Hispalis são assás graves; mas são necessarias a circumspecção e a prudencia. Os teus ouvidos podem ter-te enganado. Se essa trama horrivel existisse, estender-se-hia por toda a Hespanha. Sabes que Oppas é tio dos moços Sisebuto e Ebbas, cujas pretensões á coroa são conhecidas, pretensões que os beneficios de Ruderico ainda, por certo, lhes não fizeram esquecer. Diz-se que o rei dos godos lhes confiará o mando de uma das alas do exercito com que se encaminha á Betica. Este procedimento generoso obstaria a que rebentasse a conjuração. Não se tracta agora de satisfazer odios de parcialidades civís: tracta-se de salvar o imperio. Fora mais que infamia; não tem nome, immolar a Hespanha [76] no altar de ambiciosa vingança. Não! Embora estejamos corruptos: o exemplo do conde de Septum não será entre nós seguido.

Vem, Eurico, para que reverdeçam os louros da tua gloria. Ouves a voz da patria? É ella que te brada:—Vem combater por salvar-me, tu, o mais valente dos meus filhos!


DO PRESBYTERO AO DUQUE DE CORDUBA.


Eurico a Theodemiro, saude!


Não comprehendeste, duque de Corduba, quão fundo é o abysmo cavado neste coração pela desventura. Não me queixo de ti; porque nem a ti, nem a ninguem é dado comprehendê-lo. Medes o meu espirito pelos affectos humanos; mas é porque não sabes como elle saíu depurado do crisol de padecer infernal.

Gloria! Que m'importa a mim a gloria? Que posso fazer dessa riqueza, inutil como as outras riquezas?

Examina bem a consciencia e dize-me qual é para os corações puros e nobres o motivo immenso, irresistivel das ambições de poder, de opulencia, de renome? É um só—a mulher: é esse o termo final de todos os nossos [77] sonhos, de todas as nossas esperanças, de todos os nossos desejos. Para o que encontrou na terra aquella que deve amar para sempre, aquella que é a realidade do typo ideal que desde o berço trouxe estampado na alma, a mira das mais exaltadas paixões é a aureola celestial que cinge a fronte da virgem, idolo das suas adorações. Para o que anda, por assim dizer, perdido nas solidões do mundo, porque ainda não descubriu a estrella polar da sua existencia, o astro que ha-de illuminar-lhe a noite do coração, como o sol com os seus primeiros raios illumina as trevas de um templo, para esse a mulher é uma idéa vaga e confusa, mas formosa e querida. Não a conhece, não sabe onde esteja a imagem visivel da filha da sua imaginação, e, todavia, é para lhe pôr aos pés gloria, poderio, riqueza, que elle cubiça tudo isso. Tirae do mundo a mulher, e a ambição desapparecerá de todas as almas generosas. Realidade ou desejo incerto, o amor é o elemento primitivo da actividade interior; é a causa, o fim e o resumo de todos os affectos humanos.

Theodemiro, eu amei como ninguem, talvez, ainda amara. Este amor foi desprezado e ludibriado e, depois, comprimido pelo desprezo [78] e pelo ludibrio no fundo do coração do teu pobre amigo. Sabes o que faz um amor immenso assim recalcado?—Devora e consome o futuro e entenebrece para sempre o horisonte da vida. Nada ha, depois disso, que possa restaurar o que elle tragou: nada que possa rasgar as trevas que elle estendeu. No mesmo sepulchro não ha porvir d'esperança, nem, porventura, luz de consolação; porque ao passamento do corpo precedeu a morte do espirito.

Não, eu não quero a gloria inutil e inintelligivel hoje para mim. Não, eu não quero o mando e o poderio, porque já não sei para o que elles prestam. Como o febricitante em dia ardente do estio, que aspira a brisa da tarde, a qual não póde sará-lo, mas que lhe refrigera por momentos o ardor do sangue, assim eu ainda me deixo affagar pela idéa de me atirar ao maior fervor das batalhas pelejadas em nome da patria: esse delirio dos perigos, essa loucura que o cheiro de sangue produz é um respiradouro por onde resfolegará a indignação e a colera enthesourada por annos neste coração. Tiuphado, seria constrangido a vigiar as acções dos outros, a usar do valor tranquillo que affronta immovel a morte; mas que é tal valor [79] para aquelle a quem a vida serve só de martyrio? Uma hypocrisia mais; mais um meio de enganar o mundo. E que tenho eu com o mundo para curar d'enganá-lo?

Homem de paz—dir-me-has tu—pela profissão do sacerdocio; tendo buscado o repouso á sombra eterna da cruz, como é que desejas só o que nos combates ha mais brutal, ignobil e obscuro, o furor da matança, e recusas o que nelles ha mais nobre e puro, a intelligencia com que um unico individuo move milhares delles e lhes multiplica a força com a rapidez das idéas, com a sublimidade das concepções, com a robustez de uma vontade immutavel? Homem de paz, cingindo a espada do guerreiro, que outro mister deverá ser o teu?

Busquei, é verdade, o repouso e a paz no sanctuario de Deus!—Dias e dias, passei-os orando com a fronte unida ás lageas do pavimento sagrado, esperando que da morada dos mortos surgisse para mim descanço e esquecimento; mas o sepulchro foi esteril. Noites e noites, vagueei-as pelas solidões: assentei-me ao luar sobre os penhascos dos promontorios, com os olhos cravados no céu ou errantes pela vastidão das aguas, e onde todos acham lagrymas de consolo e [80] d'esperança eu não achei uma só, porque as minhas morriam apenas brotavam. O Senhor não me escutou as preces: não me acceitou a resignação. Este espirito, que tentava erguer-se nas asas da philosophia do Christo para as alturas, despenhava-se de novo para o pelago medonho das recordações amargas. Ainda os homens abençoavam o Presbytero, e já a consciencia lhe bradava, a todos os momentos:—condemnação para a tua alma!

Quando o céu é um deserto para a esperança, onde a acharei na terra? Que póde hoje embriagar-me, senão uma festa de sangue?

Já me teria assentado a esse phrenetico banquete nas guerras civís, se ainda não vivesse em mim o sentimento moral, ultimo que se desvanece naquelle que por largos annos viveu vida pura de crimes. Mas, sem crime, se póde assentar a elle um desgraçado como eu, ao chamar por nós todos, no meio de um grande perigo, a terra de que somos filhos.

Theodemiro, breve virá, talvez, o dia em que vejas que o braço do gardingo não enfraqueceu debaixo das roupas do Presbytero; em que elle te prove que a mortiça côr de uma negra armadura póde ser tão bella ao sol das batalhas como as couraças e os elmos [81] resplandecentes de nobres guerreiros: que o frankisk grosseiro de um obscuro soldado póde contribuir para a victoria como a pericia militar de capitão famoso. Oxalá que, entretanto, seja verdade o que dizes!—Oxalá que eu me enganasse, e que a traição não tenha tornado inuteis a intelligencia e o braço do homem para salvar as Hespanhas!



IX

JUNCTO AO CHRYSSUS



Congregados todos os godos, oppôs-se á entrada dos arabes e valorosamente foi ao encontro da invasão.

Rodrigo de Toledo: Das Cousas d'Hesp. L. 3.º


Poucos dias haviam passado depois que o duque de Corduba recebera a ultima carta do infeliz Eurico. Á frente das suas tiuphadias, elle se encaminhara para Hispalis, seguindo as margens do Betis. Ao chegar á antiga Romula, o bispo Oppas recebeu-o com demonstrações de alegria taes, que as suspeitas [83] de Theodemiro, suscitadas, máu grado seu, pelas revelações do Presbytero, quasi se desvaneceram. Na linguagem do sacerdote parecia reverberar-se uma indignação profunda contra o conde de Septum e contra os demais godos que tentavam, unidos com os barbaros, assolar a terra natal. O metropolita, segundo os costumes daquella epocha, tinha deposto o baculo de pastor para cingir a espada do guerreiro, e aos paços episcopaes de Hispalis viam-se chegar todos os dias os parentes de Oppas e, por isso, de Witiza, cujo irmão este era. Os nobres que tinham seguido o bando dos mancebos Sisebuto e Ebbas e que, pela maior parte, viviam longe da corte ajunctavam os seus servos e clientes á hoste do bispo guerreiro, que promettia acompanhar o rei godo com um esquadrão mais lustroso que os de seus sobrinhos, a quem Ruderico dera de feito o mando supremo de uma das alas do exercito que congregara em Toletum.

Em Hispalis, como por todos os angulos da Hespanha, os martellos dos fundidores e armeiros retumbavam nas bigornas com ruido incessante; açacalavam-se as armas, puliam-se e provavam-se as armaduras, e os corceis rapidos e robustos da Betica e da Lusitania, [84] impacientes nas tendas alevantadas em roda dos muros da cidade, mordiam os freios brilhantes e pareciam adivinhar que estava proximo um dia de combate. Os servos e os libertos, em competencia com os homens livres e nobres, corriam a rodeiar os pendões da independencia da patria, e o sangue generoso dos godos como que se despertava mais ardente e cheio de vigor ao grito da guerra sancta, depois de uma somnolencia de seculos, em que a sua antiga ousadia só dera signaes de vida nas luctas sem gloria das dissenções intestinas.

E toda esta energia, todo este recordar-se da rica herança d'esforço legado pelos conquistadores septemtrionaes a seus netos da Iberia, dir-se-hia que eram suscitados pela Providencia para salvar a monarchia gothica, porque de tudo isso ella carecia para resistir aos invasores. Desde que o exercito destes, semelhante a serpe monstruosa, tinha cingido estreitamente a montanha do Calpe, não se passara um unico dia em que não se fortalecesse e engrossasse. As encostas do Abyla e os despenhadeiros do Atlas, os valles da Mauritania e os areiaes de Sahara e de Barca de contínuo arrojam para a Europa, através do Estreito, os seus filhos tostados [85] ao sol fervente d'Africa. Sem pericia militar, estes barbaros são todavia temerosos nas pelejas, porque os capitães experimentados da Arabia os dirigem e movem como lhes apraz, e porque, sectarios de uma religião nova, credulos martyres do inferno, buscam os embusteiros e torpes deleites que, além da morte, lhes prometteu o propheta de Yatrib, arremessando-se com um valor que se creria de desesperados diante do ferro dos seus contrarios e contentando-se de acabar, com tanto que sobre seus cadaveres se hasteie victorioso o estandarte do Islam.

A esta gente bruta e indomavel, cujo esforço vem das crenças da outra vida, se ajunctam os esquadrões dos cavalleiros sarracenos que vagueiam pelas solidões da Arabia, pelas planicies do Egypto e pelos valles da Syria, e que, montados nas suas eguas ligeiras, podem rir-se do pesado frankisk dos godos, acommettendo e fugindo para acommetterem de novo, rapidos como o pensamento, volteiando ao redor dos seus inimigos, falsando-lhes as armas pelas juncturas das peças, cerceiando-lhes os membros desguarnecidos, quasi sem serem vistos, e, apesar da sua incrivel destreza, pelejando, quando cumpre, frente a frente, descarregando tremendos [86] golpes de espada, topando em cheio com a lança no riste, como os guerreiros da Europa, e assás robustos para, muitas vezes, os fazerem voar da sella nestes recontros violentos: homens, emfim, que, sem orgulho, se podem crer os primeiros do mundo n'um campo de batalha, pelo valor e pela sciencia da guerra. É esta cavallaria irresistivel que constitue o nervo da hoste dos mosselemanos e em que funda todas as suas esperanças o impetuoso Tarik.

Pouco depois da chegada de Theodemiro a Hispalis, um dia ao romper do sol, viu-se ao longe para a banda das serranias ao norte do Betis resplandecerem as cumiadas das montanhas, como se um grande incendio devorasse as brenhas e os carvalhaes antigos que povoavam as quebradas das serras. Era a hoste do rei dos godos, que, saíndo de Oretum, se encaminhava por Ilipa e Italica, seguindo a margem direita do rio, para a antiga capital da Betica. D'aqui, engrossando com as tiuphadias de Theodemiro e com os que seguiam o pendão de Oppas, o exercito de Ruderico devia marchar para acommetter os arabes e entregar á sorte das batalhas os futuros destinos da Hespanha.

Era já tempo. A torrente dos inimigos [87] descera, emfim, do Calpe ou Geb-al-Tarik, cujo nome de muitos seculos o capitão arabe tinha apagado, para escrever o proprio nome no collar servil de muralhas que lhe lançara. O estandarte do propheta de Mekka já fluctuava nos campos da Betica, e a sua passagem era assignalada com ruinas, sangue e incendios. Por onde quer que os mosselemanos tinham atravessado ficavam assentados o silencio do sepulchro e a assolação do anniquilamento. Tarik era o anjo exterminador mandado por Deus ás Hespanhas, e a sua espada o raio despedido do céu para fulminar o imperio dos godos.

Saíndo do seu ninho d'aguia, construido no promontorio do Estreito, os invasores internavam-se no coração da provincia. Depois de haverem transposto as montanhas que se alteiam desde as ribas septemtrionaes do Belon até Lastigi, onde as serranias se enlaçam com as alturas de Nescania, tinham-se assenhoreado sem resistencia da cidade episcopal d'Asido, e, descendo d'alli para os valles que serpeiam de Gades a Segoncia, haviam assentado as tendas do Islam nas margens do Chryssus. Tarik esperava lá o recontro dos godos. Desde que partira do Calpe, todos os dias, quasi todas as horas, [88] se viam chegar á hoste dos mosselemanos christãos vindos do lado d'Hispalis, conduzidos pelos caudilhos dos almogaures ou corredores africanos. Apenas estes homens desconhecidos eram levados ante o capitão arabe, elle enviava um dos seus cavalleiros ao logar onde tremolava o pendão de Juliano, e o conde de Septum não tardava a vir ajunctar-se com Tarik. Por vezes, á sombra de carvalho frondoso, no meio dos bosques cerrados das montanhas ou debaixo do pavilhão alevantado á hora da sésta em campina abrazada do sol, demoravam-se os dous, por largo espaço, a sós com esses homens, em cujo aspecto era facil ler estampada a traição e a vileza. Depois, os desconhecidos partiam, sem que ninguem ousasse atalhar-lhes os passos; e, quando Juliano voltava para a pequena ala dos soldados da provincia transfretana, via-se-lhe o rosto, não radiante do contentamento que ressumbra de um coração puro quando folga, mas como sulcado por um raio da alegria feroz do criminoso que vê chegar o momento do crime ha muito meditado e previsto.

Havia dous dias que nenhum incognito atravessava o Chryssus para falar a sós com Juliano e Tarik. Estes passavam horas inteiras [89] vagueiando nas alturas vizinhas do acampamento pelo lado do meio-dia e do oriente. D'alli olhavam para a montanha em cujo cimo campeiava a antiga povoação d'Asta, e, depois de a examinarem por largo espaço, voltavam ao campo ou corriam as atalaias, que se multiplicavam continuamente. Depois, tudo recahia no silencio e na escuridão; porque as almenaras ou fogueiras nocturnas, que eram d'uso entre os arabes, haviam inteiramente cessado desde a primeira noite em que estes assentaram as tendas perto da beira do rio.

Ia em meio a terceira noite após aquella em que os crentes do Islam tinham parado nas faldas septemtrionaes das cordilheiras de Asido. Eram profundas as trevas que se dilatavam pela face da terra, mas os raios scintillantes das estrellas rareiavam o manto negro da atmosphera. Esta luz incerta reverberava tremula e fugitiva nas pontas das lanças dos atalaias, que, apinhados na coroa dos outeirinhos ou embrenhados entre as sebes dos vallados, observavam os picos agudos que, ao longe para o norte, negrejavam como recortados nas profundezas do céu. O Chryssus murmurava lá em baixo, e a esteira da corrente faiscava, tambem, com o reverberar [90] da luz dos astros, emquanto o vento, passando pelas ramas de algumas arvores solitarias, respondia ao seu murmurar com o gemer da folhagem movediça.

Subitamente, no meio deste silencio, alguns esculcas e vigias lançados além do rio, na margem direita, creram perceber um ruído longinquo, que menos exercitados ouvidos não saberiam distinguir de remoto e quasi imperceptivel despenhar de torrente. Então elles se debruçaram no chão e, unindo a face á terra, escutaram por alguns momentos. Depois, erguendo-se a um tempo, ouviu-se entre elles uma voz sumida, que dizia—Os romanos!—e a turba repetiu:—Os romanos!

E, unindo-se n'uma fileira, encurvaram os arcos e ficaram immoveis.

Pouco a pouco aquelle ruído, mal sentido a principio, cresceu e tornou-se mais distincto. Brevemente, facil foi de perceber o tropeiar de milhares de cavallos e o bater confuso dos pés de milhares d'homens. Os esculcas arabes conservavam-se unidos e em silencio.

De repente o grito de:—Allah!—retumbou d'além do Chryssus: seguiu-se um estridor de poucas frechas, e n'um instante os atalaias do campo viram alvejar fitas d'escuma, [91] que se estendiam através do rio para a margem esquerda. Eram os esculcas que o cruzavam a nado, tendo empregado na dianteira dos godos os seus primeiros tiros.

Uma nuvem de settas respondeu ao sibillar das dos esculcas arabes: algumas das fitas de escuma ondeiaram, derivaram pela corrente e desvaneceram-se no dorso escuro e scintillante das aguas. O Chryssus recolhia os primeiros despojos de um terrivel combate.

Na principal atalaia dos mosselemanos soou então uma trombeta; centenares dellas responderam por todos os angulos do campo a este convocar para a morte. Os esquadrões uniam-se com a rapidez do relampago e, abandonando o recincto das tendas, arrojavam-se para a margem do rio.

Os godos, porém, tinham a vantagem de caminharem ordenados e, por isso, haviam topado com a corrente, antes que os seus contrarios começassem a atravessar a planicie fronteira. As frechas cahiam sobre os arabes que se approximavam, como saraiva espessa: largas e solidas jangadas, trazidas em carros puxados pelas mulas possantes da Lusitania, baqueiavam sobre a agua e, desdobrando-se com engenhosa arte, cresciam até entestar com a margem opposta. Então, os melhores [92] cavalleiros godos, curvando-se para diante, com o frankisk erguido, corriam para as pontes, vergadas debaixo do peso dos cavallos e dos homens cubertos de armaduras, e vinham bater em cheio nos corredores arabes, que, no meio das trevas, não podiam esquivar-se aos golpes do ferro inimigo. Já, nas bocas d'algumas dessas estradas movediças, os cadaveres amontoados começavam a embargar os passos dos vivos; mas por outras, onde os arabes ainda mal ordenados e menos numerosos não tinham podido resistir ao impeto dos godos, golfavam torrentes de guerreiros, que, marchando unidos para uma e outra parte, accommettiam de lado os arabes, os quaes, feridos pela frente e pelas costas, vacillavam e retrocediam. Debalde a voz retumbante de Tarik sobrelevava por cima dos gritos de furor e de agonia de mosselemanos e christãos. O numero dez vezes maior dos godos tornava impossivel a resistencia, e a passagem do exercito de Ruderico para a margem esquerda do Chryssus só Deus a poderia impedir.

Era quasi manhan quando o capitão arabe se desenganou da inutilidade de se oppôr por mais tempo á passagem dos inimigos. As tiuphadias godas achavam-se pela maior parte [93] na campina onde se deviam resolver os destinos da Hespanha, e, bem que a este tempo todo o exercito do Islam estivesse já em ordem de pelejar, a noite dava grande vantagem aos godos, cuja cavallaria, cuberta de armas defensivas mais solidas que as dos arabes, resistia facilmente aos cavalleiros do deserto, para quem a maior ligeireza e o mais déstro modo de acommetter eram baldados no meio das trevas. A um signal das trombetas os esquadrões mosselemanos começaram a recuar e, alongando-se pela frente do acampamento, esperaram o romper do dia emquanto o exercito godo acabava de transpôr o rio e vibrava milhares de frechas perdidas para o lado onde os capilhares alvissimos dos arabes branquejavam á luz duvidosa do céu recamado d'estrellas.

Quando o sol, rompendo detrás dos outeiros de Segoncia, veiu com o seu clarão avermelhado inundar as veigas do Chryssus o espectaculo que ellas offereciam era variado e sublime. De um lado as tendas dos arabes, derramadas pelas raizes dos montes e pelos cimos dos outeiros, podiam comparar-se ao acampamento das tribus do deserto, que, emprazadas á voz do propheta, se houvessem ajunctado n'um ponto unico das [94] solidões onde vagueiam. Diante desta cidade immensa e movediça, os esquadrões dos mosselemanos, divididos por familias e raças, estavam firmes e cerrados em frente de seus pendões, que os alféreces, montados em ginetes possantes, sustinham erguidos na rectaguarda de cada tribu. Os raios matutinos faziam alvejar os turbantes e scintillavam nos ferros das lanças que os cavalleiros tinham em punho, e os leves escudos orbiculares, que os compridos saios de malha pareciam tornar inuteis, embraçados já para o combate, brilhavam com as suas cores vivas e variadas á claridade serena do romper do dia.

Os esquadrões arabes eram a flor do exercito de Tarik; mas a catadura selvagem dos africanos seus alliados, neophytos do Islamismo, produzia, porventura, mais temor do que o aspecto delles. Torvos e ferozes eram o gesto e os meneios destes homens sem disciplina, cujas paixões se lhes pintavam nos rostos tostados e rugosos, nos olhos banhados de fel e orlados de sangue, e de cuja bruteza e miseria davam testemunho os mangoaes que lhes serviam d'armas (armas terriveis, com que abolavam os elmos mais reforçados), e a hediondez dos seus albornozes pardos, immundos e despedaçados. Tudo, emfim, [95] nelles contrastava com as armas brilhantes, com os ricos trajos e com os vultos magestosos dos cavalleiros do oriente, que, conservando-se em silencio e immoveis, pareciam desprezar as tribus bereberes de Zeneta, de Mazmuda, de Zanhaga, de Ketama e de Hoara, que formavam as alas e que, brandindo as rudes armas, com gritos medonhos se appellidavam para a batalha.

Tal era o espectaculo que offerecia o exercito dos mosselemanos. Defronte delle, a hoste goda apresentava os massiços profundos dos seus soldados, cobrindo, como grossa muralha de metal reluzente, a margem esquerda do rio. Rodeiado dos mais illustres guerreiros, Ruderico estava no centro das tiuphadias formadas pelos espadaúdos soldados da Lusitania septemtrional e da Gallecia, em cujas feições se divisava ainda que descendiam dos indomaveis suevos. Unidos com elles sob os pendões reaes, estavam os guerreiros veteranos da Narbonense, habituados a cruzar diariamente as espadas com os orgulhosos frankos, que estanceiavam pelas Gallias, além das fronteiras do imperio. A ala direita, dividida em dous esquadrões capitaneiados pelos dous filhos de Witiza, Sisebuto e Ebbas, continha a flor dos cavalleiros [96] da provincia Carthaginense. Com estes estava o corpo que o metropolitano de Hispalis ajunctara, composto em grande parte de nobres que haviam deposto a espada desde que Ruderico subira ao throno e que a cingiam de novo nesta guerra de independencia. A ala esquerda, mais pequena que as outras duas, não parecia por isso menos de temer para os arabes. O duque de Corduba, Theodemiro, era o capitão dessa ala, em que estavam todos os veteranos que o tinham ajudado a repellir as primeiras tentativas dos mohametanos e que já conheciam por experiencia o modo de pelejar delles. Estes velhos soldados deviam levar ao combate os mancebos que, á voz de Theodemiro, tinham corrido ás armas de todos os lados da Betica e em cujos corações o affamado guerreiro soubera despertar o sentimento da gloria e do amor da patria. Com elle militavam, emfim, as reliquias dos soldados tingitanos que não tinham querido associar-se á traição do conde de Septum.

Como os arabes, os godos tinham no meio de si uma nuvem de peões armados, não menos barbaros e ferozes que os filhos da Mauritania. Os montanheses do Herminio na Lusitania, aborigenes, talvez, daquelle paiz, [97] os quaes, na epocha das invasões germanicas, bem como já na da conquista romana, a custo haviam submettido o collo ao jugo de extranhos, e os vasconios, habitadores selvagens das cordilheiras dos Pyrenéus, constituiam com os servos um grosso de gente a que hoje chamariamos a infantaria do exercito. As suas armas offensivas eram a cateia teutonica, especie de dardo, a funda, a clava ferrada e o arco e a setta. Requeimados pelo sol ardente do estio ou pelo vento gelado dos invernos rigorosos das serranias, incapazes de conhecerem a vantagem da ordem e da disciplina, estes homens rudes combatiam meios nús e desprezavam todas as precauções da guerra. O seu grito de acommetter era um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes ouvia pedir compaixão; porque, vencedores, não havia a esperar delles misericordia. Taes eram os soldados que a Hespanha oppunha á mourisma que circumdava os arabes.

Por algum tempo os dous exercitos conservaram-se em distancia um do outro, como dous antigos gladiadores, observando-se mutuamente antes de começarem uma lucta que para algum delles tinha de ser, forçosamente, a ultima. A consciencia da terribilidade do drama que ía representar-se penetrou, [98] por fim, até nos corações dos barbaros de um e d'outro campo: as vozerias que sussurravam ao longe foram pouco a pouco esmorecendo, até cahirem n'um silencio tremendo, só cortado pelo respirar comprimido de tantos homens ou pelo relinchar dos cavallos que, impacientes, escarvavam a terra.



X

TRAIÇÃO



A transgressão dos juramentos tem crescido despeiadamente, e o costume de trahir os nossos principes cada vez é mais frequente.

Concilio Toledano XVI c. 10.


O sol ía já em alto quando o grito d'Allah-hu-Acbar! soou no centro dos esquadrões do Islam. Era a voz sonora e retumbante de Tarik. Repetido por milhares de bocas, este grito restrugiu e ecchoou, como o estourar de uma trovoada distante, pelos pendores das [100] serras e murmurou e perdeu-se pelos desfiladeiros e valles. A cavallaria arabe, enristando as lanças, arremessou-se pela planicie e desappareceu n'um turbilhão de pó.

«Christo, e avante!—bradaram os godos, e os esquadrões de Ruderico precipitaram-se ao encontro dos mosselemanos. São como dous bulcões ennovelados que, em vez de correrem pela atmosphera nas azas da procella, rolam na terra, que parece tremer e vergar debaixo do peso daquella tempestade d'homens. O ruído abafado e bem distincto do mover dos dous exercitos vai-se gradualmente confundindo n'um som unico ao passo que o chão intermedio se embebe debaixo dos pés dos cavallos. Essa distancia entre as duas muralhas de ferro estreita-se, estreita-se! É apenas uma faixa tortuosa lançada entre as duas nuvens de pó. Desappareceu! Como o estourar do rolo de mar encapellado, tombando de subito sobre os alcantis d'extensas ribas, as lanças cruzadas ferem quasi a um tempo nos escudos, nos arnezes, nos capacetes. Um longo gemido, assonancia horrenda de mil gemidos, sobreleva ao som cavo que tiram as armaduras batendo na terra. Baralham-se as extensas fileiras: cruzam-nas espantados os ginetes [101] sem donos, nitrindo de terror e de colera, com as crinas erriçadas e respirando um alento fumegante. Não se distingue naquelle oceano agitado mais que o afuzilar tremulo das espadas, o relampagueiar rapido dos frankisks, o scintillar passageiro dos elmos de bronze; não se ouve, senão o tinir do ferro no ferro e um concerto diabolico de blasfemias, de pragas, d'injurias em romano e em arabe, intelligiveis para aquelles a quem são dirigidas, não pelos sons articulados, mas pelos gestos de odio e desesperação dos que as proferem. De vez em quando, um brado retumba por cima do estrupido: são os capitães que buscam ordenar as batalhas. Debalde! As fileiras tem rareiado: o combate converteu-se n'um duello immenso ou, antes, em milhares de duellos. Cada cavalleiro arabe travou-se com um cavalleiro godo, e os dous contendores esquecem-se de tudo quanto os rodeia: são dous inimigos, cujo odio nasceu e encaneceu n'um momento, e n'um momento esse rancor é intenso quanto o fora, se por largos dias se accumulara sem poder resfolgar. Firmes, os guerreiros christãos vibram a pesada acha d'armas que tomaram dos frankos ou jogam a espada curta e larga dos antigos romanos; porque as lanças [102] voaram em rachas, tanto das mãos dos godos, como das dos arabes. Estes, curvados sobre os collos dos cavallos e cubertos com os leves escudos, volteiam em roda dos adversarios e, quasi ao mesmo tempo, os acommettem por um e por outro lado, tão rapido é o seu perpassar. Nesta lucta da força e da destreza, ora o duro neto dos wisigodos, deslumbrado pelo incessante dos golpes, esvaído pelas muitas feridas, suffocado pelo peso da armadura, vacilla e cai, como o pinheiro gigante; ora o ligeiro agareno vê coriscar em alto o frankisk e logo o sente, se ainda sente, embargar-lhe o ultimo grito na garganta, até onde rompeu, partindo-lhe o craneo e sulcando-lhe o rosto. Assim, os centros dos dous exercitos semelham o tigre e o leão no circo, abraçados, despedaçando-se, estorcendo-se ennovelados, sem que seja possivel prever o desfecho da lucta, mas tão sómente que, ao adejar a victoria sobre um dos campos, terá descido sobre o outro o silencio e o repouso do anniquilamento.

Os soldados que seguiam a bandeira de Theodemiro tinham-se abalado para o combate apenas viram partir os esquadrões de Ruderico. A ala direita dos mohametanos era capitaneiada pelo amir da cavallaria africana, [103] Mugueiz, a quem a sua origem christan fizera dar o nome de Al-Rumi. O amir era o mais valente e experimentado dos capitães de Tarik, e por isso este fiara do renegado o mando daquella ala, na qual tambem esvoaçava o pendão de Juliano, que, se não abandonara, como Al-Rumi, a crença do Calvario, tinha, comtudo, amaldicçoado tambem a sancta religião da patria. Estes dous guerreiros, ferozes ambos, um por indole e habito, outro por vingança e ambição, amavam-se mutuamente, porque os fizera irmãos uma palavra escripta em suas consciencias, a maxima affronta humana, o nome de renegados.

O recontro dessa ala foi semelhante em tudo ao do grosso das suas hostes, salvo que ahi o frankisk encontrava no ar o frankisk, a injuria de godos respondia á injuria proferida por bocas de godos, e as imprecações do odio trocavam-se com maior violencia ainda. Theodemiro combatia á frente das suas tiuphadias onde mais acceso ía ser o travar da batalha, sem, todavia, esquecer o officio de capitão. Era isto; era o exemplo que tornava invenciveis os seus soldados. Guiando os cavalleiros tingitanos, Juliano tambem rompera primeiro adiante dos arabes. [104] Os dous antigos companheiros de combates haviam topado em cheio, e as lanças voaram-lhes das mãos em rachas. Os cavalleiros passaram um pelo outro como relampagos, para logo tornarem a voltar, arrancando das espadas.

«Circumcidado!—bradou Theodemiro, ao perpassar por Juliano na rapidez da carreira.

«Escravo!—replicou o conde de Septum, rangendo os dentes.

A injuria vibrada pelo duque de Corduba penetrara mui fundo. Semelhante a Judas, o conde da Tingitania trahira a patria pela cubiça e, defendendo o estandarte do propheta de Medina, fazia triumphar o koran. Duas vezes a sua alma era a d'um circumciso.

Os dous cavalleiros godos acommetteram-se com toda a furia de rancor entranhavel: as espadas, encontrando-se no ar, faiscaram como o ferro abrazado na incude; mas a de Theodemiro fora vibrada por braço mais robusto e, postoque o golpe descesse amortecido, ainda entrou profundamente no escudo que o seu adversario levava erguido sobre a cabeça. Entretanto Juliano, revolvendo ligeiro a espada, rompeu a couraça do duque de Corduba e feriu-o levemente no lado.

«Vencedor dos vasconios,—gritou, rindo [105] diabolicamente, o conde de Septum—olha por ti! Nas margens do Chryssus não ha taças de vinho, como aquellas com que te embriagavas nos paços do teu senhor. Aqui o que corre é sangue!»

Theodemiro tinha já desencravado a espada do escudo de Juliano, em que ficara embebida. Rapidamente ella descera de novo guiada pela raiva de que abafava o guerreiro. O golpe quebrou o escudo já falsado e bateu no elmo brilhante do conde, com tal furia, que este perdeu a luz dos olhos e, curvando-se para diante, se abraçou ao collo do cavallo, quasi sem sentidos. Outra vez que o duque de Corduba vibrasse o ferro, Juliano estava perdido: o caminho da morte lá lhe ficara indicado no elmo.

«Que olhas para o chão, traidor?—disse Theodemiro, com voz tremula de colera e d'escarneo e segundando o golpe.—É a terra da patria, que vendeste aos infieis como tu!»

O ferro, porém, não pôde chegar á cimeira do capacete do conde. Outro ferro, seguro por mão robusta, se metteu de permeio. Era a espada de Mugueiz, o qual, passando, vira o perigo imminente do seu amigo e correra para o salvar.

Então Theodemiro voltou-se contra o renegado, [106] e um violento combate se travou entre ambos. Mugueiz não era menos déstro que o principe da Betica. Mais membrudo e robusto que elle e, além disso, ainda não ferido, a vantagem era toda sua; mas o esforço de Theodemiro suppria essa inferioridade.

Entretanto Juliano recobrara o alento: a vergonha, o despeito, a sede de vingança estorciam-lhe o coração. O nobre ginete em que cavalgava, sentindo seu senhor semi-morto, tinha corrido espantado até onde a multidão de christãos e arabes, travados em peleja sanguinolenta, lh'o consentia. O conde, cravando-lhe os acicates, com a espada erguida na mão, arremessou-o para o logar onde o duque de Corduba pelejava com Mugueiz. Era um feito covarde; mas que importava a Juliano a deshonra? Assignalado com o ferrete indelevel de traidor, havia-se habituado a viver para um sentimento unico—a vingança. E a vingança era quem o impellia.

Neste momento, por uma das pontes já desertas lançadas na noite antecedente sobre o Chryssus, soava um correr de cavallo á rédea solta. Alguns soldados que andavam mais perto da margem volveram para lá os olhos. Um cavalleiro d'extranho aspecto era [107] o que assim corria. Vinha todo cuberto de negro: negros o elmo, a couraça, e o saio; o proprio ginete murzello. Lança não a trazia. Pendia-lhe da direita da sella uma grossa maça ferrada de muitas púas, especie de clava conhecida pelo nome de borda, e da esquerda a arma predilecta dos godos, a bipenne dos frankos, o destruidor frankisk. Subiu rapido a encosta, d'onde Ruderico attendia aos successos da batalha. Parou um momento e, olhando para um e outro lado, endireitou a carreira para o logar em que fluctuavam os pendões das tiuphadias da Betica. Como um rochedo pendurado sobre as ribanceiras do mar, que, estalando, rola pelos despenhadeiros e, abrindo um abysmo, se atufa nas aguas, assim o cavalleiro desconhecido, rompendo por entre os godos, precipitou-se para onde mais cerrado em redor de Theodemiro e Mugueiz fervia o pelejar.

Juliano tinha-se aproximado no emtanto do esforçado duque de Corduba, que, ferido e obrigado a combater com o déstro e feroz renegado, a custo se poderia defender dos golpes do conde, golpes que o odio e a colera dirigiam. Alguns cavalleiros da Betica voaram a soccorrer Theodemiro; mas os arabes com que andavam travados tinham-nos [108] seguido de perto e, rodeiando Mugueiz, haviam tornado inutil o soccorro dos cavalleiros christãos. O apertado revolver das armas formava uma selva de ferros em volta dos dous capitães inimigos, através da qual debalde o conde de Septum buscara muitas vezes abrir caminho para ferir Theodemiro, até que, finalmente, galgando por cima de um arabe derribado, podera vibrar um golpe. O elmo do nobre godo restrugira, e o guerreiro vacillara. A ultima pagina da sua vida parecia estar escripta no livro dos destinos. Os dous adversarios do duque de Corduba íam tingir de negro as que ainda lhe restavam em branco.

Mas o cavalleiro desconhecido havia passado através da hoste goda e chegara á dianteira dos arabes. Com a maça jogada ás mãos ambas abolava e rompia as armas mais bem temperadas, e as púas, entrando pelas carnes dos que se lhe punham diante, iam esmigalhar-lhes os ossos. Por onde elle atravessava nem as fileiras se uniam, nem os godos achavam adversarios. Como a charrúa tirada com violencia em chão batido de planicie deixa após si grossas glebas revolvidas, assim aquella arma irresistivel deixava, ao passar, uma larga cauda de cadaveres entretecida [109] de moribundos debatendo-se em terra. Os godos, espantados, perguntavam uns aos outros quem sería aquelle temeroso guerreiro; mas entre elles ninguem havia que podesse dizê-lo. Se combatesse pelos mosselemanos, crêlo-hiam o demonio da assolação; mas, pelejando pela cruz, dir-se-hia que era o archanjo das batalhas mandado por Deus para salvar Theodemiro e, com elle, os esquadrões da Betica.

No instante em que o cavalleiro negro chegou ao logar onde já o duque de Corduba só procurava amparar-se contra Mugueiz e Juliano, este, cego de furor, descia com segundo golpe: a espada, porém, voou-lhe das mãos em pedaços, batendo na maça do cavalleiro negro, que, deixando depois cahir a pesada borda ao longo da ephippia, ergueu o frankisk e, descarregando-o sobre o hombro do renegado, lhe fez uma ferida profunda. A dor arrancou um brado a Mugueiz, a cujo som o seu ginete amestrado o arrebatou para o meio dos arabes, e Juliano, vendo-se desarmado, fugiu após elle. Então o desconhecido disse a Theodemiro algumas palavras sumidas e, sem esperar resposta, internou-se outra vez no meio dos esquadrões agarenos.

[110] Desde este momento a ala direita dos mosselemanos começou de affrouxar, porque Mugueiz, mal ferido, se retrahira para o acampamento. Alguns cheiks illustres jaziam moribundos ou mortos ás mãos do cavalleiro negro, que parecia escolher as suas victimas entre os mais nobres guerreiros do Islam. Animados por elle, os godos, cobrando novos brios, procuravam imitá-lo e arremessavam-se destemidos através da hoste inimiga, que debalde procurava resistir á torrente. Os signaes da victoria dos godos eram já dolorosamente certos para os mosselemanos.

Ruderico viu isto e exultou. O sol inclinava-se para o occaso, e o centro do exercito arabe, onde se achava Tarik, estava firme; mas os clamores do triumpho, que já soavam na ala esquerda dos christãos, começavam a espalhar a incerteza entre os soldados do propheta. Foi então que o rei dos godos ordenou á sua ala direita descesse contra os bereberes e, dispersando-os, acommettesse os esquadrões de Tarik, que pareciam haver lançado raizes no solo ensanguentado do campo da batalha.

Um quingentario partiu á rédea solta para levar a ordem fatal aos filhos de Witiza. Á frente dos seus soldados os dous irmãos [111] falavam a sós com Oppas e contemplavam o combate. Apenas ouviram o que se lhes ordenava, Sisebuto e Ebbas, voltando-se para os esquadrões que lhes obedeciam, clamaram:—vingança!—Este brado foi repetido por Oppas e pelos nobres que o seguiam. Então, no meio daquella espessa selva de lanças repercutiu um grito que respondia ao dos capitães:—Gloria ao rei Sisebuto! Morte ao traidor Ruderico!

E os filhos de Witiza e o hypocrita bispo d'Hispalis, com as lanças aprumadas e as espadas na bainha, lançaram-se pelo valle abaixo, e a mór parte dos esquadrões seguiram-nos. Apenas Pelagio, duque de Cantabria, ficou immovel á frente dos selvagens vasconios e d'algumas tiuphadias da Gallecia e da Narbonense que, alheias á traição daquelles mal-aventurados, recusaram segui-los.

Ruderico viu ennovelarem-se nos ares os rolos de pó que se alevantavam sob os pés dos ginetes: Valentes mancebos—exclamou—hoje a Hespanha vai ser salva por vós! Vêde—accrescentava, sorrindo e falando com os guerreiros que o cercavam, muitos dos quaes haviam condemnado a sua arriscada confiança na generosidade dos filhos de Witiza:—vêde como elles voam contra os africanos! [112] Quando um grande risco ameaça a patria não ha odios entre os godos; todos elles são irmãos, porque todos elles são filhos desta nobre terra d'Hespanha.

E o quingentario que voltava gritou de longe:—Somos trahidos!

Ruderico empallideceu. A certeza da victoria tinha-se desvanecido.



XI

DIES IRAE



Por quantas desventuras a patria dos Godos tem sido abalada: quão repetidos a pungem os golpes dos fugitivos e a nefanda suberba dos transfugas, quasi ninguem ignora.

Codigo wisigothico II-1-7.


A passagem de tão avultado numero de godos para os inimigos e o crepusculo que descia obrigaram Ruderico a fazer cessar o combate, emquanto a noite pousava tranquilla sobre aquella campina povoada de afflicções e dores. A aurora rompeu meiga e serena, como nos dias em que vinha trazer as [114] alvoradas alegres ás malhadas dos pastores que, colmadas, amarelejavam outr'ora pelas margens relvosas do Chryssus, em vez das tendas de guerra que alli alvejavam agora com os primeiros resplendores da madrugada. O homem debatia-se ahi nas vascas da morte, e o sol passava envolto na sua gloria, indifferente ás angustias d'aquelles que, em seu ridiculo orgulho, se chamavam monarchas e conquistadores do mundo; passava, sem lh'importar se os vermes vestidos de ferro chamados guerreiros se despedaçavam uns aos outros, com o delirio insensato das viboras no momento dos seus amorosos ardores.

Pelas trevas, um ruído sumido, mas incessante, de passadas d'homens e de tropeiar de cavallos soara horas inteiras em um e em outro campo. Era que em ambos elles surgira uma idéa unica. O rei godo havia resolvido formar um corpo só das reliquias da sua hoste e com elle acommetter a principal batalha dos inimigos, para a destruir rapidamente antes que as alas podessem soccorrê-la. O mesmo pensamento tivera Tarik. Semelhante á trovoada do estio, que se amontoa durante a noite em dous polos encontrados e ao alvorecer semeia de coriscos as solidões do céu [115] e povoa d'estampidos discordes os echos da terra, assim cada um dos campos se agglomerava em uma pinha gigante; convertia-se n'um homem só, para em duello de morte resolver com o seu contendor se os filhos das Hespanhas deviam acceitar a lei do koran ou continuar a abrigar-se á sombra da divina cruz.

Tarik lançara na frente da hoste mosselemana os transfugas do inimigo. Sisebuto, Ebbas, o bispo d'Hispalis e o conde de Septum com os seus numerosos guerreiros constituiam a vanguarda. Seguia-se a cavallaria arabe: os bereberes cingiam este massiço de homens e ginetes, em parte cubertos de ferro, e os indisciplinados cavalleiros da Mauritania, dispersos como almogaures, deviam vagar soltos para fazer entradas nas alas inimigas e impedir assim que ellas podessem a tempo soccorrer o centro do exercito, que o general arabe esperava desbaratar no primeiro impeto.

Ruderico, pela sua parte, tinha posto na vanguarda as tiuphadias victoriosas de Theodemiro, os cavalleiros da Cantabria guiados pelo moço Pelagio, filho de Favilla, que succedera a seu pae no governo daquella provincia, e, finalmente, os guerreiros escolhidos da Lusitania e da Gallecia, que elle proprio [116] capitaneiava. Como Tarik, o rei godo collocara de um e de outro lado da hoste apinhada os frecheiros e fundibularios selvagens do Herminio e os montanhezes vasconios, antiga raça de celtas, irmãos em linhagem, em valor, em crueza, em armas e em costumes. Na retaguarda estavam os soldados da provincia Carthaginense que não tinham seguido o exemplo dos transfugas por andarem derramados em outros logares ou, talvez, porque, não corrompidos, guardavam ainda no coração vestigios d'amor da patria.

Ao amanhecer, cada um dos capitães inimigos viu com assombro que a mesma traça de guerra de que pretendera valer-se para obter a victoria occorrera á mente do seu adversario. Era, porém, tarde para alterar a ordem da batalha. Ao mesmo tempo as trombetas godas e os anafis arabes deram o signal do combate, e o grito de—Christo e ávante!—confundiu-se em estampido medonho com o brado de—Allah-hu-Acbar—o brado de guerra dos pelejadores sarracenos.

O chão pareceu affundir-se com o encontro daquellas duas mós enormes de homens armados, e o echo dos botes das lanças nos escudos convexos e nas armas sonoras dos cavalleiros repercutiu nas encostas fronteiras [117] e desvaneceu-se ao longe, murmurando entre as quebradas. Desde o primeiro embate, não mais fora possivel distinguir os exercitos, travados como dous luctadores furiosos. Eram um vulto só, indelineavel, monstruoso, immenso, cujo topo ondeiava, semelhante ao de cannaveal movido pelo vento, cujos contornos indecisos se agitavam, torciam, alargavam, diminuiam, oscillavam, como tapete de nenuphars sobre marnel revolto pelo despenhar das torrentes. Nuvens de settas sibillavam nos ares: as espadas sarracenas cruzavam-se com as espadas godas: a cateia teutonica ía, zumbindo, abrir fundos regos nas fileiras arabes, e os membros ossudos dos peões lusitanos e cantabros estouravam debaixo das pancadas violentas dos mangoaes da peonagem mourisca. Muitos ginetes vagueiavam sem donos; muitos cavalleiros combatiam a pé. Desgraçado do que, ferido, cahia em terra; porque para elle não havia misericordia: o punhal acabava o que o frankisk ou a cimitarra começara. Dir-se-hia que os regatos de sangue, serpeiando por entre as duas hostes enredadas e salpicando as frontes e corpos, eram as veias descarnadas e rotas daquelle grande vulto, coleiando na derradeira agonia.

[118] O cavalleiro negro, ao cessar a batalha do dia antecedente, desapparecera do campo, sem que ninguem soubesse dizer como ou onde se escondera. Só Theodemiro parecia não o ignorar; porque, ao falarem do desconhecido e das suas quasi incriveis façanhas, os tiuphados e quingentarios que em volta delle esperavam o romper da manhan e o recomeçar da peleja, o duque de Corduba buscara sempre mudar de conversação ou respondera, carregando-se-lhe o semblante de tristeza:—«É, porventura, algum desgraçado que procura o repouso da morte, e para o homem que resolveu morrer, que feito de valor será impossivel? Se elle não quer deixar na terra nem o echo vão de um nome glorioso, respeitae-lhe os desejos, porque profundo deve ser o abysmo da sua desventura!»

Ao som, porém, das trombetas que annunciavam o renovar do combate, o cavalleiro negro não tardara a apparecer onde mais accesa andava a briga. Via-se, comtudo, que era principalmente nas fileiras dos arabes, onde as púas agudas e cortadoras da sua temerosa borda ou maça d'armas faziam maiores estragos. Mas, quando algum dos godos transfugas ousava esperar-lhe os golpes [119] ou tentava ferí-lo, ouvia-se-lhe um rugido como o de maldicção preso na garganta por colera immensa, e o seu miseravel contrario não tardava a golfar o sangue na terra da patria que trahira e a entregar aos demonios a alma tisnada pela infamia da perfidia. Os arabes supersticiosos quasi criam ver nelle Iblis, o rei infernal do Gehenna, armado da espada percuciente, solto por Deus para os punir das offensas commettidas contra o divino koran. Diante delle recuavam os mais esforçados mosselemanos, e só de longe os frecheiros lhe disparavam alguns tiros, que se lhe empennavam no escudo ou, roçando por este, vinham bater-lhe na armadura, debaixo da qual manava já o sangue de algumas feridas, e os membros lassos começavam a desmentir a impetuosidade do espirito.

Como na vespera, o sol inclinava-se das alturas do céu para o occaso, e ainda a batalha estava indecisa, se é que o terror que incutia o cavalleiro negro no logar onde pelejava não fazia pender um pouco a balança do lado dos godos. De repente, um grito agudo partiu do mais espesso revolver do combate; este grito gigante, indizivel, d'intima agonia, era o brado unisono de muitos homens; era o annuncio doloroso de um successo [120] tremendo. O cavalleiro negro, que, impellido pela ebriedade do sangue, e semelhante a rochedo que se despenha pelo pendor da montanha, ia derramando a morte através dos esquadrões do Islam, volveu os olhos para o logar onde soara o bramido retumbante da multidão. Era no centro do exercito godo. As tiuphadias vergavam em semicirculos para a banda do Chryssus, como o açude minado pela torrente, a ponto de desprender-se das margens, oscilla e se curva, bojando sobre a veia inferior das aguas. A muralha de ferro que, posta entre o Islamismo e a Europa, dizia á religião do propheta d'Yatrib—não passarás d'aqui—vacilla, como a quadrella da cidade fortificada batida muitos dias por vaivem d'inimigos. Por fim, aquelles vastos massiços d'homens ligados pela cadeia fortissima da disciplina, do pudor militar e do esforço, derivam rotos ante os turbilhões dos arabes, ondeiam e derramam-se na campina. Pelo boqueirão enorme aberto no centro da hoste goda precipitam-se as ondas dos cavalleiros mohametanos, e, após elles, a turba dos bereberes, com um bramido barbaro. Debalde as alas tentam ajunctar-se, travar-se uma com outra, soldar os membros despedaçados do leão iberico. [121] Passa por lá a impetuosa corrente dos netos d'Agar, que envolve e arrasta os que pretendem vadeia-la. Deus contara os dias do imperio de Lewighild, e o sol do ultimo delles era o que descia já para o occidente!

O cavalleiro negro vira a fuga das batalhas godas, advertido pelo clamor que a precedera. Voltando as rédeas do seu murzello, esporeiou-o para aquella parte. Levava lançado ás costas o escudo, onde os tiros dos archeiros africanos ciciavam, como a saraiva no inverno batendo nos troncos despidos do roble. Pendia-lhe da esquerda do arção a borda ensanguentada, da direita o frankisk. O ginete tresfolegava na furia da carreira, açoutando os ares com as crinas ondeiantes e atirando-se ao meio da especie de voragem aberta nas fileiras christans, a qual como que tragava uns após outros os esquadrões mosselemanos. Ao chegar á confluencia daquellas encontradas torrentes de homens armados, o guerreiro parou e, olhando em roda por um momento, ouviu-se-lhe um grande brado. Era a primeira vez que a sua voz soava no meio da batalha, e a unica palavra que lhe saíu da boca foi o nome de Theodemiro. Esse brado devia chegar longe, reboando como o trovão. Dir-se-hia [122] que o cavalleiro estava habituado á conversação do bramido dos mares revoltos e do rugir das ventanias pelas fragas das serras; porque naquelle grito, conjuncto inexplicavel de colera e de dor, havia uma semelhança, uma harmonia com o gemido immenso da natureza quando lucta comsigo mesma no passar da tempestade.

Mas aos ouvidos de Theodemiro não podia chegar a voz do desconhecido. Arrastado pelos turbilhões de fugitivos, forcejando por obrigá-los a voltar o rosto contra os arabes, ora com palavras de amarga reprehensão, ora com o exemplo, o duque de Corduba combatia mui longe delle. Em vão o cavalleiro negro lhe repetia o nome: era inutil este chamar e, apenas, servia para attrahir os golpes dos agarenos victoriosos. As achas d'armas, as cimitarras, os dardos faziam centelhar a armadura e o escudo do desconhecido, que, tomado, ao que parecia, d'um pensamento doloroso, alongava os olhos por toda a parte em busca de Theodemiro. Com um gemido de desalento, o cavalleiro saíu, emfim, da especie de torpor que o tornava immovel ante o espectaculo de tanta desventura, e o seu despertar foi tremendo. Erguendo em alto a maça d'armas e vibrando-a [123] furiosamente em volta de si, começou a partir espadas e a abolar armaduras. Em breve, ao redor delle, no meio dos mosselemanos vencedores, o terror invadia os animos, como na vespera, como nesse mesmo dia, se espalhara por toda a parte onde haviam reluzido as púas da sua ensanguentada borda ou o ferro do seu cortador frankisk.

Apenas, á força de golpes, o cavalleiro negro abriu no meio dos mosselemanos vencedores uma larga clareira, esporeiando o ginete, lançou-se para o lado em que os godos desordenados se retrahiam ante as espadas do Islam. No espaço intermedio entre os fugitivos e os arabes fluctuava sem recuar o pendão do duque de Corduba. Em volta desse pendão tremolavam as signas das tiuphadias da Betica, que, cercadas por todos os lados, resistiam ainda ao embate dos sarracenos. No meio, porém, dos que abandonavam vilmente o campo de batalha nem uma unica bandeira se hasteiava; mas, pelo esplendido das armas, o guerreiro conheceu aquelles que não ousavam resgatar com a vida a deshonra da Hespanha. Eram os soldados escolhidos de Ruderico; era a brilhante cavallaria que elle proprio capitaneiava! A indignação trasbordou da alma do guerreiro:

[124] «Rei dos godos, rei dos godos!—exclamou elle—és covarde! Embora vás esconder a tua ignominia nos muros de Toletum. Ainda neste campo de batalha restam homens valentes: ainda Theodemiro combate, não por teu throno deshonrado, mas pela terra de nossos paes. Foge tu com os que não sabem morrer pela patria; que nas margens do Chryssus ficam os que hão-de perecer com ella! Maldicto o godo e christão que foge para ser servo!»

E o cavalleiro apertou de novo as esporas ao possante murzello.

Não tardou, porém, que o furor se lhe convertesse em tristeza, e que as lagrymas, rebentando-lhe dos olhos, lhe apagassem a maldicção que haviam murmurado os labios. O seu valente cavallo galgava na carreira por cima de cadaveres e de moribundos, de christãos e de infiéis, e a terra, convertida em bréjo de sangue, apenas soava debaixo dos pés do ligeiro animal. Passando por meio dos esquadrões sarracenos, podia-se dizer que o desconhecido se assemelhava ao anjo do Senhor, quando desce por entre os mundos onde habitam os demonios, solitario e temido no imperio dos filhos das trevas que o odeiam. A fama das suas façanhas tinha-o cercado [125] d'uma auréola de terror supersticioso, e, quando passava, os guerreiros do deserto apontavam para elle e em voz sumida diziam uns aos outros—«Ei-lo que vem! ei-lo, o cavalleiro negro!»

Mas, porque parou elle, soffreiando subitamente o ginete? Que ha ahi, nessa extensa seara ceifada de homens de guerra, que possa attrahir os olhos do mais incansavel dos segadores? No sitio em que parou estava, poucas horas antes, hasteiada a signa real: era o centro da hoste goda; mas dos que ahi pelejavam, uns lá vão ao longe precipitar-se no abysmo da ignominia; outros, os mais felizes, adormeceram do seu ultimo somno no regaço da patria. O guerreiro fitou os olhos no chão: a fouce da morte, passando por alli, cerceiara a derradeira esperança do imperio de Theoderik. O espectaculo que se lhe antolhava era a explicação do terror que se apossara de tantos homens valentes. Fugiam: Ruderico, porém, estava ahi! mas retalhado de golpes; mas sem vida! Já não sería debaixo de seus pés que o throno da Hespanha se desfaria aos golpes do machado dos arabes. Um sceptro sem dono em Toletum e mais um cadaver juncto ás margens do Chryssus, eis o que restava do ultimo rei dos godos! [126] Com a sua morte fenecera ao redor delle a esperança, e com a esperança dera em terra o esforço dos animos mais robustos. As alas ignoravam este triste acontecimento e por isso pelejavam ainda.

Mas pouco tardou a ser geral a róta; porque pouco tardou a espalhar-se aquella nova fatal. Um dia bastara para anniquilar o imperio que durante quatro seculos fora o mais poderoso e civilisado entre as nações germanicas estabelecidas nas diversas provincias romanas. A corrupção dos ultimos tempos concluira a sua obra, e o edificio da monarchia gothica, ainda rico de magestade exterior, mostrara, emfim, desconjunctando-se e desabando, o ferver dos vermes que interiormente o roíam. A cruz, derribada com elle, só devia tornar a hasteiar-se triumphante em todos os angulos da Hespanha depois do combater de oito seculos.

Uma parte do exercito godo ainda podera salvar-se atravessando o rio; mas as pontes lançadas na vespera tinham por fim estalado, derivando pela corrente, debaixo do peso dos fugitivos, e as aguas devoravam muitos que o ferro havia poupado. Theodemiro, que não perdera o animo no meio daquella desventura, alcançara fazer passar á margem opposta as [127] reliquias dos soldados da Betica e os restos de muitas tiuphadias de outras provincias. Nos arraiaes, os arabes, senhores do campo, saudavam a victoria com o som dos instrumentos barbaros e com clamores de alegria que íam sussurrar ao longe pelos valles e campos, desertos dos seus moradores. Um homem só combatia ainda daquelle lado á beira do rio. Era o cavalleiro negro. Cercavam-no muitos sarracenos, mas de longe, porque os que ousavam approximar-se delle cahiam a seus pés moribundos. Ás vezes, como que tentava romper por entre os inimigos, mas era tentar o impossivel. No volver dos olhos inquietos para um e para outro lado, parecia buscar descubrir alguma cousa naquelle vasto campo, onde só descortinava os cadaveres dos vencidos e os vultos ferozes dos vencedores. Por fim, voltando o rosto para a margem opposta, viu fluctuar sobre uma eminencia o pendão de Theodemiro. Uma expressão fugitiva de contentamento lhe assomou então ao gesto. Despedindo das mãos a borda ensanguentada, que sibilou por meio dos arabes apinhados em volta, o guerreiro arrojou-se á torrente. Á luz do sol que se punha, viu-se-lhe umas poucas de vezes reluzir o elmo, alongando-se pela superficie das [128] aguas e desapparecendo por largos espaços. As trevas, que já desciam densas, e a impetuosidade da corrente que o arrastava não permittiram prever-se qual sería a sua sorte. Eurico era a ultima e tenuissima esperança que bruxuleiava nos horisontes do imperio godo: como uma estrella cadente que se immerge nos mares, aquelle esforço brilhante se desvanecera na escuridão que tingia as aguas do Chryssus!



XII

O MOSTEIRO



Se a todos se convertessem todos os membros em linguas, ainda assim não caberia nas forças humanas o narrar as ruinas d'Hespanha e os seus tão diversos e multiplicados males.

Isidoro de Béja: Chronicon.


O mosteiro da Virgem Dolorosa estava situado n'uma encosta, no topo da extrema ramificação oriental das que a dilatada cordilheira dos Nervasios estende para o lado dos Campos-gothicos. A pouca distancia do valle onde se viam as ruinas de Augustobriga, caminho de Legio, no meio de uma solidão [130] profunda aquella silenciosa morada de virgens innocentes achava-se convertida em praça de guerra. Edificio sumptuoso, construido no tempo de Rekkáred, as suas grossas muralhas de marmore pareciam, na verdade, quadrellas de castello roqueiro; porque na architectura dos godos a elegancia romana era modificada pela solidez excessiva do edificar germanico ou saxonio, que os rudes wisigodos do tempo de Theoderik e de Ataulph haviam introduzido no meio-dia da Europa. Os restos dispersos das tiuphadias da Gallecia tinham-se encerrado em todas as povoações e logares fortificados ou por qualquer modo defensaveis, e os habitantes dos povoados, acolhendo-se ahi com elles, deixavam desertas as suas moradas, incertos do dia em que veriam reluzir ao longe as lanças dos agarenos, que já devastavam o norte da Lusitania e parecia encaminharem-se para o lado de Tude. Os muros fortissimos daquelle vasto edificio, as suas portas tecidas de ferro e carvalho, as estreitas frestas, que apenas lhe deixavam penetrar no interior uma luz duvidosa, os tectos ameiados e, finalmente, os fossos profundos que o circumdavam, tudo o tornava acommodado para larga defensão. Com algumas decanias de veteranos [131] que no meio do terror podera ajunctar, o quingentario Atanagildo se havia acolhido ahi, e com elle um grande numero dos mais abastados habitantes d'aquelles contornos. Protegido pela vizinhança das serras das Asturias, ainda livres, Atanagildo cria que o mosteiro fortificado sería sempre inexpugnavel barreira contra a violencia e cubiça dos arabes. Entretidos em submetter e pôr a sacco as opulentas cidades do meio-dia, contentes com as veigas feracissimas da Betica, da Lusitania e da Carthaginense e com o sol quasi africano que as aquecia, que viriam elles buscar nas brenhas intractaveis e frias da Gallecia e da Cantabria? Sería, apenas, algum troço dos inquietos e selvagens bereberes, os que se derramavam por estas partes; mas, contra esses, eram de sobra os tiros de catapulta arrojados das torres do mosteiro e as cateias e frechas despedidas d'entre as ameias que lhe cingiam a fronte, como a coroa de um rei gigante, e que não podiam ser derribadas pelos mangoaes brutescos, unicas armas dos broncos e seminús montanheses do Atlas.

No centro do immenso edificio erguia-se o templo monastico; peça quadrangular, construida de grossos cantos de marmore, arrancado [132] das pedreiras inexgotaveis que se estendem desde os Nervasios até as cercanias de Legio. No exterior do templo, do meio d'um vasto pateo que o rodeiava, viam-se negrejar na sua cincta de estreitas cellas as vestiduras severas das monjas, cuja oração contínua, quer em commum no sanctuario, quer na solidão das suas breves moradas, só era interrompida por somno curto, dormido sobre a dura enxerga da penitencia. Esta parte do mosteiro era a que ellas unicamente occupavam havia alguns dias. Os seus claustros pacificos e saudosos, onde nunca soara o ruido tormentoso da vida, onde nunca as dolorosas realidades do mundo haviam penetrado, salvo nos sonhos passageiros e dourados de algum coração mais ardente, restrugiam com o bater das armas, com o amontoar das provisões, com o carpir dos que abandonavam seus lares, com a violenta e brutal linguagem da soldadesca. No meio daquella vasta mole de marmore, em que os sons discordes reboavam, ecchoando soturnos nas arcadas e corredores profundos, o templo, aonde se acolhera a quietação monastica, era como um oasis frondoso e abrigado por seus palmares no meio do deserto que o sopro infernal do simûm revolve, fazendo [133] redemoinhar nos ares aquelle oceano de areia fervente.

Era ao anoitecer de um dia de novembro. Por entre o nevoeiro cerrado que, alevantando-se do valle vizinho, trepava pela encosta, deixando apenas livres as negras agulhas dos cerros, lá no viso da montanha, divisavam-se a custo as ameias e muralhas á luz baça do crepusculo, refrangido em céu pardo e humido. A brisa morna de oeste gemia nos troncos dos castanheiros nús, nas ramas esguias dos pinheiros bravos, e as passadas monotonas dos vigias ao longo dos adarves formavam um concerto accorde com o aspecto melancholico do céu e da terra.

A esta hora duvidosa entre a claridade e as trevas, uma numerosa cavalgada atravessava o ribeiro no fundo do valle e encaminhava-se para o mosteiro da Virgem Dolorosa. Dez cavalleiros, cujas barbas alvas lhes cahiam sobre o peito, saíndo por baixo das redes de ferro que lhes serviam de gorjal, rodeiavam uma dama, cujo rosto occultava o comprido véu que, pendente do retíolo, lhe descia sobre o alvo amiculo, mas cujos meneios airosos e talhe esbelto revelavam nella o viço e as graças da idade juvenil. Seguiam-na alguns pagens desarmados, cujos rostos [134] imberbes já o temor e o desalento que se pintavam em todos os semblantes nesta epocha desastrada haviam sulcado de rugas. Vadiado o rio, a cavalgada encaminhou-se por uma senda tortuosa que ía dar á entrada do mosteiro, aonde, ao que parecia, desejavam chegar antes que de todo se fechasse a noite. Ao approximar-se aquella comitiva, os vigias conheceram que eram godos—provavelmente alguns desgraçados que vinham buscar o abrigo dos seus muros fortificados—, e as grossas portas não tardaram a abrir-se para recolherem mais esses pobres fugitivos.

Apenas os recem-chegados, atravessando o atrio do fundo portal, saíram á cerca interior, o que parecia mais auctorisado entre os velhos cavalleiros pediu para falar a sós com Atanagildo. Levado o ancião á torre onde o quingentario habitava, não tardou este em descer á cerca, no meio da qual, ainda a cavallo e sem erguer o véu, a dama desconhecida esperava rodeiada dos seus. Com todos os signaes de respeito, Atanagildo dirigiu-lhe algumas palavras em voz submissa e, tomando a redea do palafrem, guiou-o para uma porta contígua ao frontispicio da igreja. A um signal seu a porta abriu-se, e um vulto negro de monja appareceu no limiar della.

[135] O quingentario, tomando pela mão a desconhecida e apresentando-a á monja, disse-lhe:

«Veneravel Chrimhilde, acolhei entre as puras virgens que vos obedecem uma das mais nobres donzellas d'Hespanha: é por uma noite, apenas, que ella vos pede abrigo: ámanhan ao romper d'alva partirá para Legio.»

«Ámanhan ou depois, que importa?—replicou a monja, cujo semblante austero descubria não tanto a decadencia dos annos, como os vestigios da penitencia:—emquanto Chrimhilde reger o mosteiro da Virgem Dolorosa, nunca a hospitalidade será refusada nelle ao que a implorar. E quando a virtude de nobre donzella tiver um fiador tal como vós, esta achará sempre em mim o carinho de mãe e nas escolhidas do Senhor, que me alevantaram do meu nada ao tremendo ministerio de sua abbadessa, encontrará o amor e o gasalhado d'irmans para com irman querida.»

Dizendo isto, a boa abbadessa tomou pela mão a desconhecida e, internando-se com ella pelas arcadas que diziam para o interior do edificio, allumiadas escaçamente pelas lampadas turvas que d'espaço a espaço pendiam das abobadas achatadas, desappareceu aos olhos de Atanagildo.

[136] A noite vai no seu fim: a campa do mosteiro dá o signal do terceiro nocturno. Subitamente, o sanctuario illumina-se, e os vidros multicores jorram nas trevas externas a claridade dos candelabros e tochas, como, de dia, deixam transudar a luz do sol no ambito interior da igreja; ésto perpetuo de resplendores, que ora descem do céu para a terra, ora tentam, subindo da terra para as alturas, desfazer o manto das trevas. N'uma extensa fileira, a cuja frente vem a veneravel Chrimhilde, as monjas entram no coro e, tomando para um e outro lado, param voltadas para o altar. Juncto da abbadessa uma donzella de trajos brancos sobresái entre as monjas vestidas de negro, não tanto pela alvura das roupas, como pela formosura: e todavia, são formosas muitas das virgens que a rodeiam, pela maior parte ainda no viço da vida. É a nobre dama recem-chegada, á qual nem o cansaço de trabalhosa jornada, nem o habito dos commodos do mundo poderam impedir acompanhasse na oração aquellas que o tracto de poucas horas já lhe fazia amar como irmans. Chrimhilde prostra-se com a face no chão: as monjas e a dama vestida de branco seguem o seu exemplo. Através desses labios innocentes [137] que beijam o pavimento do templo murmuram durante alguns instantes as orações submissas. Depois, a abbadessa ergue-se, e pouco a pouco aquelles semblantes, que cobre uma pallidez d'ineffavel repouso e brandura, vão-se alevantando da terra, com os olhos voltados para o céu, semelhantes aos de anjos de marmore ajoelhados em roda de um tumulo, que surgissem pouco a pouco animados por vida repentina e, cheios de saudade da morada celeste, enviassem aos pés do Senhor o seu primeiro suspiro. Então a psalmista começa a entoar um dos hymnos sacros do Presbytero de Carteia que havia pouco se tinham introduzido no ritual gothico, e as demais monjas respondem em córos alternos. O hymno dizia assim:

«As azas da tua providencia, oh Senhor, despregam-se por cima da terra, e o justo desgraçado acolhe-se debaixo dellas:»

«Porque ahi moram os sanctos contentamentos; esquecem as dores da vida; vive-se á luz da esperança.»

«Confiado em ti, o fraco affronta as tyrannias do forte; o humilde ri das suberbas do poderoso.»

«Quem revelou aos pequeninos e oppressos esta divina guarida? Quem nos ensinou [138] a esperar? Quem a ser felizes pela fé no meio das agonias?»

«Foi Christo, o teu filho querido. A tua justiça condemnava á dor o genero-humano, ainda no berço: elle nos conquistou para a felicidade no meio dos tormentos da cruz.»

«Nós tomaremos, tambem, esta em nossos hombros: ella é a guia da bemaventurança.»

«O seu peso é suave; porque sob ella os espinhos da existencia que ensanguentam os membros do peregrino sem repouso, chamado o homem, convertem-se em prado macio de relva e boninas.»

«Que reine para sempre a cruz!»

«Erguei-a sobre todos os pincaros das serranias, gravae-a em todas as arvores dos bosques, hasteae-a sobre as rochas maritimas, estampae-a nas muralhas das cidades, na fronte dos edificios, apertae-a ao coração.»

«E depois, que o genero-humano se prostre e adore nella a redempção que nos trouxe o Ungido de Deus.»

«A cruz triumphará eterna!»

Neste momento aquellas vozes harmoniosas cessaram, como se de subito nos labios de todas as monjas se houvesse posto o sello da morte. A porta do templo, aberta com [139] violento impulso, rangera nos gonzos, e um velho ostiario viera cahir de bruços sobre as lageas do pavimento, soltando o grito doloroso que por tantos milhares de bocas diariamente se repetia na Hespanha:—Os arabes!

As vozes confusas dos vigias, misturadas com o tinir do ferro, responderam, como um uivar de feras, ás palavras do ostiario: as faces pallidas das virgens empallideceram ainda mais.

A alvorada começava a repintar na terra a claridade do sol, escondido ainda no oriente. Os godos com as armas nas mãos coroavam as ameias. Do alto de uma das torres Atanagildo observava a campanha, e a fronte entenebrecia-se-lhe com um véu de tristeza.

Naquella noite muitos nobres senhores de terras tinham chegado ao mosteiro, vindos da banda de Legio. Um numeroso exercito d'arabes apparecera subitamente na vespera juncto aos muros da cidade, que logo fora acommettida pelos pagãos. Era o que sabiam. Fugitivos desde o apparecimento dos inimigos, ao anoitecer haviam enxergado para aquella parte um clarão grande e duradouro. Se eram as fogueiras dos arraiaes arabes, se o incendio de Legio, não o podiam resolver; só, sim, que sería impossivel resistir [140] por largo tempo cidade tão mal defendida a tamanha copia d'infiéis, que não tardariam a derramar-se para o lado do mosteiro, proseguindo nas suas devastadoras conquistas pela Gallecia e pela Tarraconense.

Era esta negra prophecia dos fugitivos que se tinha verificado ao romper da manhan. Atanagildo, do alto da torre principal, vira ao longe um vulto negro que descia dos outeiros, onde já allumiava tudo a luz matutina. Esse vulto assemelhava-se a serpe monstruosa que, rolando-se do monte para a planicie em collos tortuosos, se lhe reflectissem nas duras conchas os raios solares; porque naquelle corpo gigante havia um contínuo e rapido scintillar. Atanagildo percebera o que era, e por isso a tristeza lhe obscurecia a fronte.

Como a faisca electrica, o terror se espalhara no mosteiro apenas se dissera que os arabes se approximavam. Mais de um coração de guerreiro batia apressado, como o do pobre ostiario que buscara na piedade de Deus o amparo que mal podia esperar das muralhas do forte edificio; do pobre ostiario, que, sem o saber, fora desmentir o hymno triumphal da cruz, diariamente derribada dos altares nos templos profanados da Hespanha.

[141] Dentro em breve, o exercito do Islam se approximara a tão curta distancia que facilmente se distinguiam os esquadrões dos filhos do deserto e as turmas dos berebéres. Tambem os arabes tinham observado o reluzir das armas através das ameias do mosteiro. A hoste inteira parou no valle, e alguns cavalleiros encaminharam-se pela senda tortuosa que findava na ponte levadiça contigua ao grande portal, erguida desde que pelos fugitivos constara que os mosselemanos se avizinhavam.

Quando o quingentario conheceu que os arabes paravam no fundo do valle, o seu coração generoso verteu sangue com a lembrança de que todo o esforço dos soldados que coroavam os adarves do mosteiro, por muito que houvera sido, não fora bastante para salvar os desgraçados que tinham buscado abrigo á sombra daquellas muralhas. Viu o desalento pintado nos semblantes dos mais valorosos, e a ultima esperança varreu-se-lhe da alma. Todavia, esperou com rosto seguro a chegada dos cavalleiros que subiam a encosta.

Estes approximaram-se, emfim. Pelo seu aspecto e trajo via-se que na maior parte eram godos. Com as espadas nas bainhas, [142] pareciam vir em som de paz: tambem, por isso, nem uma frecha só se disparou contra elles dos muros.

Pouco antes de chegarem ao fosso profundo que circumdava o edificio, um cavalleiro que parecia o principal daquelle pequeno esquadrão, adiantando-se aos demais, veio topar com a entrada da ponte e, olhando para as muralhas, onde reluziam immoveis as lanças dos christãos, chamou:—«Atanagildo!»

Ao ouvir aquella voz, o quingentario empallideceu: com visivel anciedade, voltou-se para um centenario que estava juncto delle e disse-lhe:

«Mandae descer a ponte e dae passagem franca a esse cavalleiro que proferiu o meu nome: mas a elle, unicamente a elle!»

O centenario obedeceu. D'ahi a pouco as armas do guerreiro tiniam pelas escadas da torre. Apenas subiu ao terrado, encaminhou-se para Atanagildo e, estendendo-lhe a dextra, exclamou:—«Meu irmão!»

O quingentario, em cujas faces pallidas passara um relampago de vermelhidão, recuou e, com voz affogada, respondeu:

«Atanagildo teve um irmão; mas esse morreu para elle: porque entre elle e Suintila [143] está a cruz quebrada aos pés dos pagãos; está o céu e o inferno. A minha herança é a ignominia do vencimento, os ferros d'escravo e as promessas do Christo: a tua as riquezas, a victoria e a maldicção de Deus. Não tróco os nossos destinos, nem quero a amizade do precíto. Arrepende-te, abandona os infiéis, e então Atanagildo te apertará ao peito e te dará aquelle nome tão suave da nossa infancia, o sancto nome de irmão.»

«Estás louco!—replicou Suintila—...Porém, não foi para disputar comtigo que vim aqui: vim para te salvar. Olha para o valle: áquella hoste numerosa que lá vês poucas horas poderão resistir estes muros mal guarnecidos, Abdulaziz, o invencivel filho do amir d'Africa, é quem a capitaneia: Legio cahiu hontem em nosso poder, e de parte nenhuma podes ser soccorrido. O bispo d'Hispalis e o conde de Septum, que vem comnosco, offerecem-te o mando de um dos seus esquadrões. Os arabes pedem aos godos que os seguem fidelidade ao estandarte do kalifa, não á crença do Islam: pódes guardar tua fé. Eis o que Suintila alcançou a teu favor. Estas velhas muralhas e as donzellas encerradas nestes claustros, que Abdulaziz soube serem pela maior parte formosas e que elle destina para [144] enviar a Kairwan, são o vil preço da tua salvação. Suintila aconselha-te que o entregues; porque, apesar das injurias, ainda se não esqueceu de que é irmão de Atanagildo. Resolve e responde: que devo dizer a Juliano e a Oppas, a quem suppliquei para ser mandado aqui?»

«Dize-lhes—atalhou o quingentario, cujos olhos faiscavam d'indignação—que eu respeito a vida de um aráuto, ainda quando este é um miseravel renegado, como tu ou como elles, aliás não fora Suintila quem lhe levaria minha resposta. Dize-lhes que as suas infames offertas são para mim tão abominaveis como elles. Dize-lhes que, antes de um sacerdote sacrilego e de um conde traidor poderem estampar o ferrête da prostituição na fronte das innocentes virgens do Senhor, terão de passar por cima das ruinas destes muros e dos cadaveres dos seus e dos meus soldados. E tu, renegado, sae d'aqui! Possa eu nunca mais vêr-te o rosto e esquecer-me na hora de morrer de que nessas veias gyra o sangue de nossos nobres e generosos avós.»

«Como te aprouver, meu irmão!»—replicou Suintila, e um sorriso lhe deslisou nos labios, descorados por mal disfarçada colera. Proferidas estas palavras, desceu as escadas da torre.

[145] A cavalgada, que lenta subira a encosta, descia-a rapidamente emquanto Atanagildo, visitando os muros, exhortava os guerreiros da cruz a pelejarem esforçadamente. Quando estes souberam quaes eram as intenções dos arabes ácerca das virgens do mosteiro, a atrocidade do sacrilegio affugentou-lhes dos corações a menor sombra d'hesitação. Sobre as espadas juraram todos combater e morrer como godos. Então o quingentario, a quem parecia animar sobrenatural ousadia, correu ao templo. Era necessario que as monjas soubessem qual futuro as aguardava. Resignado a acabar defendendo-as, Atanagildo nem por isso esperava salvá-las das mãos dos agarenos. Dolorosa era a nova; mas cumpria não lhes esconder o seu horrivel destino.

As mulheres e os velhos que tinham vindo buscar asylo no mosteiro enchiam já o templo, em cujas abobadas murmuravam e repercutiam os gemidos e as preces. Rompendo pela multidão, o quingentario encaminhou-se para o coro e chamou por Chrimhilde, que com as monjas acompanhava o povo nas suas orações fervorosas. A abbadessa aproximou-se das reixas douradas que a separavam do guerreiro.

«Chrimhilde,—disse Atanagildo em voz [146] baixa—é necessario valor! Dentro de poucas horas sobre os muros do mosteiro da Virgem Dolorosa estará hasteiado o pendão dos infiéis, e eu terei deixado d'existir, porque jurei sobre a cruz desta espada ficar sepultado debaixo das ruinas delle. O exercito dos arabes é irresistivel, e a unica esperança que me resta é que o Senhor acceitará o meu sangue, derramado em seu nome, como um testemunho da minha fé.»

«Os infiéis—acudiu a abbadessa, procurando dar ás palavras que proferia um tom de firmeza que o tremulo da voz lhe desmentia—contentar-se-hão, talvez, com as riquezas aqui amontoadas imprudentemente e com a posse destes logares. Se é isto o que pretendem, saiamos e cedamos ao culto impio de Mohammed o templo do Deus vivo, já que para o salvar sería inutil todo o sangue que se vertesse. Com as virgens esposas do Senhor buscarei os ermos das serras do norte, e, como as monjas primitivas, ahi acharemos a paz e o repouso, emquanto o pae celestial nos não chama á nossa verdadeira patria.»

«Prouvera a Deus, veneravel Chrimhilde—tornou o quingentario—que nos fosse licito desamparar estes muros: deixar só entregues [147] ás profanações dos infiéis a pedra e o cimento! Mas uma atroz mensagem acaba de me ser mandada por quem, como eu, devia horrorisar-se della. Repelli-a, porque se me offereciam vida e honras a troco de perpetua infamia. Agora resta-me unicamente o morrer como godo e como soldado da cruz.»

«E qual era essa mensagem?—perguntou a abbadessa anciosamente.—Em nome de quem vinha ella?»

«Do bispo d'Hispalis e do conde de Septum; de um sacerdote e de um nobre. O preço da nossa liberdade era a prostituição das vossas filhas queridas, das monjas consagradas á Virgem Dolorosa, que esses malaventurados destinam para saciar as paixões brutas daquelles a quem venderam a terra d'Hespanha. Para o obter cumpre-lhes, porém, passar por cima dos membros despedaçados dos guerreiros que povoam estas muralhas. Pela cruz assim o jurámos todos. Havemos de cumpri-lo.»

As palavras de Atanagildo vibraram no coração de Chrimhilde, como vibra o primeiro dobre pelo finado que ainda jaz em seu leito da derradeira agonia na alma do bom filho, que resa, chorando, ajoelhado ao pé delle. Recuou atterrada e, volvendo para o céu os [148] olhos enxutos, porque a afflicção nelles estancara as lagrymas que despontavam, ficou por alguns momentos com as mãos erguidas, como implorando uma inspiração de cima. Pouco a pouco, porém, as suas faces tingiram-se da cor da vida, o sorriso da esperança rodeiou-lhe os labios, e as lagrymas, consolo supremo das maiores magoas e, tambem, expressão eloquente dos contentamentos mais intimos, lhe rebentaram com força e lhe orvalharam a negra estamenha do habito.

«O martyrio! o martyrio!—murmurou a abbadessa.—Oh Christo! bemdicto seja o teu nome.»

«O martyrio, sim:—interrompeu o quingentario—mas depois do sacrilegio; mas depois que as victimas da corrupção dos traidores tiverem sido arrastadas para longe da Hespanha e depois que nos harems do oriente houverem sido polluidas pela sensualidade brutal dos conquistadores. Eu, ao menos, não verei esta ultima offensa á crença sacrosancta de nossos paes...»

«Ide:—proseguiu a abbadessa, que parecia não o haver escutado, embebida em meditação profunda:—Quando os infiéis se approximarem, enviae-lhes mensageiros de paz. Que vos deixem acolher ás montanhas com [149] essa multidão d'infelizes que vieram buscar o abrigo destes muros. Não cureis das monjas da Virgem Dolorosa, nem receieis por ellas. Achei um meio para as salvar da sorte medonha que as ameaça. Desamparae-nos; porque o archanjo do esforço é o nosso defensor. O meu arbitrio será acceito pelas escolhidas do Christo; sê-lo-ha, porque o Senhor m'o inspirou. Nada mais é preciso dizer-vos.»

E, de feito, o seu olhar e gesto eram de uma inspirada: mas nesse olhar e gesto havia o que quer que era de severa aspereza misturado com alegria suave, como em céu que varre o noroeste as nuvens tenebrosas remendam o azul purissimo do firmamento, d'onde, através dellas, jorram torrentes de luz.

«Mas o juramento?—tornou tristemente o quingentario.—Devo respeitar o vosso segredo; todavia parece-me licito duvidar da efficacia dos meios que imaginaes para vos salvardes das mãos dos mosselemanos.»

«O vosso juramento é inutil—acudiu Chrimhilde—e eu vos escuso delle. A resistencia só servirá para arrastardes comvosco á morte os velhos inermes e as criancinhas innocentes. Ide e abri pacificamente as portas aos pagãos. Se tanto é preciso, eu [150] vo-lo ordeno. Atanagildo, um dia nos veremos no céu.»

Dictas estas palavras com toda a firmeza de uma resolução inabalavel, a abbadessa affastou-se da reixa e encaminhou-se para o meio das freiras, que, entretanto, haviam estado immoveis com os olhos cravados no pavimento. O quingentario ficou por alguns momentos pensativo: depois, agitado pela lucta cruel dos affectos e pensamentos oppostos que tumultuavam no seu coração, atravessou vagarosamente o templo e desappareceu.

A um signal de Chrimhilde as monjas saíram do coro; a donzella vestida de branco, ao lado da veneravel abbadessa, apertava-lhe a mão entre as suas; mas os seus meneios eram firmes como os della e mais do que os della altivos. Desde que a ultima freira passou, as préces misturadas de soluços que sussurravam na egreja converteram-se n'um som unico de chôro perdido, como se a ultima esperança houvera desapparecido com ellas.

A campa do mosteiro bateu tres pancadas com largos intervallos: é o signal que convoca as monjas a capitulo. Para lá se encaminham. A donzella que nessa noite chegara acompanha-as, tambem, ahi. Entraram. As [151] pesadas portas da casa capitular rangem nos gonzos cerrando-se, e o correr dos ferrolhos interiores reboa ao longe pelos corredores monasticos. Ao mesmo tempo a ponte levadiça cai sobre o fosso que rodeia as muralhas do vasto edificio; um cavalleiro se arroja sózinho ao meio dos esquadrões do Islam, que já subiram a encosta, e pede para falar com o conde de Septum em nome de Atanagildo. Dentro de poucos instantes ei-lo que volta, e os mosselemanos param a curta distancia. Então um grande numero de crianças, de velhos e de mulheres, saíndo, como torrente comprimida, do portal profundo do mosteiro, atravessam por meio de duas fileiras de soldados de Juliano e de guerreiros arabes que vieram collocar-se aos lados da ponte. Esta multidão desordenada ondeia, separa-se, apinha-se de novo, para tornar a espalhar-se, até que desapparece ao longe, caminho das montanhas. Após ella, cubertos dos seus saios de malha, mas sem armas, os soldados de Atanagildo seguem com rosto melancholico as mesmas trilhas por onde se vai escoando a turba, até que, tambem como esta, se derramam pelas selvas densas dos montes e pelos barrancos escarpados que, retalhando os Nervasios, dão passagem através [152] delles para as regiões septemtrionaes da Hespanha.

Apenas o quingentario, que fora o derradeiro a atravessar a ponte levadiça, volvendo ainda os olhos arrasados de lagrymas para aquella sancta morada, desceu a encosta, as duas fileiras de soldados arremessaram-se ao fundo portal, cujas abobadas pela primeira vez reboaram com os gritos discordes de homens desenfreiados, e o edificio solitario respondeu-lhes com um silencio lugubre. Diante delles estavam patentes as vastas arcarias e escadas, os longos corredores, os pateos espaçosos. Lá, no centro, o templo solitario, com as portas abertas de par em par, amostra-lhes aos olhos ávidos as suas riquezas, ao passo que parece querer vedar ao sol, com as cores sombrias das vidraças das janellas, o espectaculo das profanações de que na sua existencia secular vai ser theatro e testemunha pela primeira vez.

Como o tufão, rugindo, se abysma nas galerias tortuosas de mina extensa, assim os godos renegados e os mosselemanos, que os seguem de perto, se precipitam dentro do mosteiro. Pelas arcadas e corredores, pelas salas e aposentos ouve-se o rir e falar desentoado, o ruído de passadas rapidas, o tinir [153] das armas, o estourar das portas. Arabes, mouros, soldados godos da Tingitania misturam-se, disputam, ameaçam-se, dividindo o sacco. Os cheiks e os capitães do conde de Septum vedam-lhes unicamente a entrada das habitações interiores, onde a riqueza do templo lhes promette á cobiça mais avultada presa. Elles sós se encaminham para essa parte e desapparecem nos claustros monasticos, onde não se ouve outro signal de vivos, senão o som de seus pés e, a espaços, o tinir das proprias armaduras, que roçam pelos pilares de marmore.

Suintila, o deshonrado irmão do virtuoso Atanagildo, era do numero dos capitães que haviam primeiramente penetrado no claustro solitario. Tinha-se adiantado mais e descia por uma escadaria lobrega que terminava, segundo parecia, n'uma quadra allumiada por muitas tochas. Esta circumstancia, que lhe excitava viva curiosidade, o obrigou a apertar o passo. A meia descida parou. Crera ouvir um cantico entoado por muitas vozes accordes, que a espaços era interrompido por gemidos dolorosos. Escutou: não se enganava! Então o terror começou a apossar-se delle, e, porventura, teria retrocedido, se não sentira que alguem mais o seguia. Eram dous [154] cheiks arabes e um centenario do conde de Septum que o acaso guiara para aquella parte. Interposto entre o clarão avermelhado que saía do subterraneo e os tres que se approximavam, Suintila fez-lhes signal de silencio e continuou a descer mansamente, até chegar á porta que dava da escadaria para o aposento illuminado. Então conheceu onde estava. Era um desses logares mysteriosos e sanctos que a primitiva architectura religiosa construía debaixo dos templos—templos tambem, mas da morte; porque ahi, sobre os altares, repousavam as cinzas dos martyres, e aos pés delles os fiéis que obtinham para ultima jazida uma pouca de terra onde ainda fossem affagar-lhes as cinzas o sussurro longinquo das préces e o perfume dos sacrificios.—Suintila achava-se na crypta do mosteiro da Virgem Dolorosa. O clarão que vira era o de muitos lumes, accesos em lampadarios gigantes, e reverberando nas stalactites penduradas das juncturas do marmore: era o reflexo das tochas que ardiam diante dos crucifixos, unicas imagens que se viam sobre as aras núas. Em cada um dos tumulos das monjas antigas, enfileirados ao comprido dos muros, negrejavam apenas uma data e um nome. Era o que restava para memoria de [155] muitas virtudes naquelles annaes do mosteiro, naquella chronologia de pedra. O sepulchro da viuva d'Hermeneghild, o desgraçado irmão de Rekkáred, elevado mais que os outros á entrada do templo subterraneo, semelhava um throno de rainha em palacio de sombras, porque o ambiente grosso e frio e o halito das sepulturas revelavam que ahi era o imperio da morte.

As torrentes de luz que inundavam esta morada de terror não permittiram a Suintila enxergar no primeiro volver de olhos os objectos que estavam ante elle. Espantado, tentava descobrir no meio daquella resplandecente solidão algum vulto humano, quando os cantos e gemidos, suspensos momentaneamente, romperam de novo: primeiro as vozes harmoniosas; depois o gemido íntimo, doloroso, affogado; logo outra vez o silencio.

Os dous cheiks e o centenario tinham chegado ao pé de Suintila. Animados uns pela presença dos outros, encaminham-se para o grande tumulo e d'alli olham para o logar d'onde haviam soado os canticos. Eis o temeroso espectaculo que têem diante de si:

Grossos e altos cancellos de roble separam do resto do templo um extenso recincto sem [156] sepulchros, immediato ao altar principal: uma cruz agigantada se ergue no topo: por um e outro lado daquelle espaço além das grades negrejam duas fileiras de monjas: muitas estão de joelhos e debruçadas sobre o primeiro degrau do altar: em pé, entre as duas fileiras, uma dellas, cujos olhos desvairados reluzem á claridade das tochas e cujo aspecto severo infunde uma especie de terror, tem na mão um punhal, cujo ferro sem brilho parece tincto em sangue. Juncto da monja um vulto de mulher vestida de branco sobresáe no meio das virgens cubertas de lucto: unido ás grades que defendem a entrada daquelle recincto, um velho, cujas melenas e longa barba lhe alvejam sobre os hombros e peito, está de joelhos com os braços estendidos através da balaustrada: agita-o uma convulsão horrivel de pavor, que lh'embarga na garganta os sons articulados e só lhe consente murmurar um ruído confuso, semelhante ao respiro ancioso de agonisante. Um dos dous córos de freiras começa a entoar de novo os psalmos: a monja do punhal estende a mão, ordenando silencio. Vai falar. Suintila, a ponto de arremessar-se para aquelle lado, pára e escuta as suas palavras. São lentas e lugubres, como as de um espectro, [157] que se alevantasse d'alguma das campas derramadas ao longo da crypta. Dirige-as ao vulto branco que está a seu lado:

«Ainda uma vez, nobre dama, attendei ás supplicas do velho buccellario que tenta salvar-vos. Para vós ha esperança na terra: a nossa mora no céu. Quando os infiéis souberem que ainda existe na Hespanha quem possa quebrar com ouro o vosso captiveiro ou vingar com ferro a vossa affronta, respeitarão a pureza de nobre virgem. A nós, que não temos ninguem no mundo, restava-nos unicamente o tremendo arbitrio que o Senhor nos inspirou. O martyrio não tardará a cingir-nos a fronte d'uma aureola de gloria: os anjos de Deus nos esperam.»

«A minha ultima resolução, veneravel Chrimhilde, é acabar juncto de vós e de nossas irmans. O meu animo saírá, como o dellas, illeso da ultima prova que o Christo nos pede na vida. Como ellas, darei sem hesitar testemunho da cruz. O velho buccellario de meu pae mente á propria consciencia quando affirma que os infiéis respeitarão a pureza de uma donzella goda: a infamia tem sido escripta por elles na fronte das familias mais illustres da Hespanha: o cutello ou a prostituição é o que os arabes offerecem á innocencia. [158] Eu escolho o cutello: a morte val mais que a deshonra. Porventura, para a evitar me guiou o Senhor ao mosteiro da Virgem Dolorosa.»

Seja feita a vontade do Altissimo:—respondeu a abbadessa alevantando ao céu as mãos, entre as quaes apertava o punhal.

Depois de um momento de silencio, Chrimhilde disse, voltando-se para o lado esquerdo: «Hermentruda, approximae-vos!»

Uma das monjas saiu d'entre as outras e veio ajoelhar aos pés da abbadessa; as suas companheiras ajoelharam tambem voltadas para o altar; e o hymno que Suintila ouvira ao descer para a crypta murmurou de novo naquellas curvas abobadas.

Como lá no horisonte o sol tremulo e sereno se reclina ao fim da tarde no seio tenebroso dos mares, assim o canto melancholico e melodioso das virgens foi pouco a pouco enfraquecendo até expirar no cicío de orações submissas. Apenas cessou de todo, um gemido de agonia agudo e rapido soou juncto da abbadessa. Aos olhos de Suintila figurou-se que o punhal de Chrimhilde descera duas vezes sobre a monja que estava a seus pés. Um brado de colera e horror, saíndo involuntariamente da bocca do godo, restrugiu [159] pelo templo. Crera o renegado que Hermentruda havia sido assassinada. Pareceu-lhe então claro o sentido das palavras mysteriosas que ouvira. As monjas fugiam ao captiveiro do harem pelo ádito do sepulchro. Elle assistia a uma scena horrenda de suicidio, e o braço mais robusto de Chrimhilde apenas era o instrumento cego movido por todas essas vontades, conformes para morrer.

«Mulher ou demonio, detem-te!—bradou Suintila, correndo com os cheiks e o centenario para o recincto fechado e procurando abrir os fortes cancellos que lh'embargavam os passos.

Embebidas no seu drama cruel, nem as monjas, nem Chrimhilde volvem sequer os olhos para os quatro guerreiros, cujas armas reluzem ao fulgor das tochas. Hermentruda não está morta. Ergueu-se. Tem a cabeça descuberta, os louros cabellos esparzidos, o collo nú. Bem como o aspecto do formoso archanjo de luz no dia em que, rebelde, a espada de fogo lhe estampou na fronte a condemnação eterna, o seio e o rosto da monja, suavemente pallidos, estão sulcados por betas escuras, que serpeiam por aquelle gesto, como as viboras estiradas ao sol sobre um busto grego tombado entre as ruinas [160] de antigo templo pagão. É que, semelhantes ao nordeste frio e agudo, que, passando pela bonina viçosa, lhe desbarata os encantos, os fios do punhal de Chrimhilde correram por lá violentos e rapidos, e n'um momento anniquilaram a formosura da virgem.

As grades, fechadas interiormente, balouçam aos empuxões de Suintila; mas não cedem. «Okba, diz o godo a um dos cheiks, correi! Chamae os mais robustos zenetas e os negros de Takrur armados dessas achas a cujo primeiro golpe nunca resistiu elmo de bronze. Prestes! chamae-os aqui. Abdulaziz deve ter chegado. Que venha! Mulher infernal lhe vai destruindo peça a peça os despojos mais ricos, os que elle destinava para si e para o khalifa. Que venha salvá-los! Que venha! Prestes, cheik de Hoara!»

E, emquanto o cheik galga a extensa escadaria os tres tentam muitas vezes fazer estourar os grossos ferrolhos, que resistem ás suas diligencias. Arquejando, Suintila abandona a tentativa inutil. Ameaça Chrimhilde: as injurias acompanham as ameaças: seguem-nas as supplicas, as promessas e logo, de novo, as pragas e as affrontas. Baldado é tudo. Chrimhilde lançou ao renegado um olhar de compaixão e conservou-se em silencio.

[161] Mas os canticos cessaram de todo: as monjas saem successivamente de ambos os lados e vem ajoelhar aos pés da abbadessa: vem despir as galas da formosura e comprar á custa dellas a pureza da virgindade e a palma do martyrio. Cada vez mais rapido range o punhal nos collos purissimos das virgens do mosteiro. O gemido que expira, comprimido pela constancia, já se prende com o que a dor e a fraqueza mulheril arrancam do seio das victimas ao descer do primeiro golpe, e a fileira das que se vão debruçar sobre os degráus do altar cresce d'instante a instante, ao passo que rareiam as outras duas.

A terrivel sacerdotisa parou. Está o seu braço cansado de tão largo sacrificio? Não! Braço e animo são robustos, porque os fortalece o espirito do Senhor. É que o momento supremo da morte se approxima. A mourisma jorra subitamente pelo portal estreito, como o rio caudal na caverna que se lhe estendia debaixo do leito e cuja abobada fendeu tremor de terra. Os guerreiros negros das tribus de Takrur, á voz de Abdulaziz que os precede, precipitam-se contra os solidos cancellos do logar vedado: vinte machados ferem a um tempo nas grades, que gemem sob a furia dos golpes e mal resistem ás [162] pancadas violentas dos negros possantes, aos quaes redobra os brios a presença do amir, cuja colera resfólega em maldicções e blasphemias.

Entre as monjas e os arabes bem curta distancia medeia: e todavia, lá no mais pequeno recincto, onde soam os gemidos de dores atrozes, onde só ri uma esperança, a da morte, ha paz íntima, ha o céu: aqui, na vasta crypta, onde a ebriedade de facil triumpho, a riqueza dos despojos, o futuro de uma larga existencia de gloria e deleites sorriem na mente dos infiéis, está o furor insensato, está o inferno. O evangelho e o koran estão frente a frente no resultado das suas doutrinas. É sublime a victoria do livro do Nazareno!

Os golpes de machado redobram: os troncos affeiçoados do roble começam a estourar nas suas juncturas. A ultima freira fora já curvar-se juncto aos degráus do altar: a donzella vestida de branco vai ajoelhar aos pés de Chrimhilde, exclamando:

«Para mim tambem o martyrio! Salvae-me do opprobrio!»

«A tua constancia, filha, na dura prova de agonia por que tens passado te purificou. Sê uma das monjas da Virgem Dolorosa e [163] vai com tuas irmans receber a coroa de martyr.»

O ferro, porém, que descia sobre o collo da donzella foi cair com a mão de Chrimhilde aos pés da cruz gigante do altar. Um revés do alfange de Abdulaziz lh'a cerceiara: as solidas grades estavam despedaçadas.

A abbadessa vacillou e, ao cair, só pôde murmurar:—Jesus, recebe a minha alma!

Foram as suas palavras extremas: um segundo golpe lhe atalhou na garganta o derradeiro suspiro.

As freiras ergueram-se e encaminharam-se para o logar em que jazia o cadaver destroncado da abbadessa. Ajoelharam juncto della, com a face voltada para a turba dos infiéis. Os seus rostos, inchados e manando sangue, eram disformes e horriveis.

«Ao menos, tu serás minha!—exclamou o amir, lançando a mão ao braço da donzella vestida de branco, a quem o terror desta scena rapidissima tornara immovel, como uma dessas estatuas que parecem orar sobre os sepulchros nas cathedraes da idade-média.—Filhos valentes do Sudan, conduzí-a á minha tenda. As outras, que as azas do anjo Azrael se estendam sobre os seus cadaveres.»

[164] D'ahi a poucas horas a crypta estava em silencio. As monjas da Virgem Dolorosa jaziam degoladas em volta da veneravel Chrimhilde, e as suas almas puras abrigavam-se no seio immenso de Deus.



XIII

COVADONGA



Ao sopé daquelle monte um penhasco defendido pela natureza e não por arte, dilatando-se vasto, resguarda uma caverna inteiramente inexpugnavel para qualquer ardil d'inimigos.

Monge de Silos: Chronicon c. 3.º


A victoria do Chryssus assegurara aos arabes a conquista da Hespanha inteira, porque o desalento entrara em todos os corações, e o terror quebrara todos os brios. O duque de Cantabria, Pelagio, fora o unico em cuja alma não morrera inteiramente a esperança. Errante pelos cerros quasi inaccessiveis que [166] se elevam no extremo oriental da Gallecia e que, passando ao norte da Carthaginense, vão entroncar-se no vulto gigante dos Pyrenéus, o mancebo não dobrara a cerviz ao fado cruel que pesava sobre seus irmãos. Poucos o haviam seguido naquella vida quasi selvagem; mas esses poucos eram homens a quem a aura da liberdade parecia a unica atmosphera em que seus pulmões robustos poderiam resfolegar; homens a cujos olhos as affrontas da cruz derribada do cimo das cathedraes sería espectaculo incrivel e insupportavel. Uma caverna servia de paço ao joven rei das montanhas e de templo ao Crucificado. Os dominios de Pelagio eram as serranias e os valles profundos onde, porventura, até então nunca soara a voz humana. O urso ferocissimo, o javalí indomavel, a leve corça abasteciam a grosseira mesa desses godos, a quem a desgraça e a vida dura das solidões fizera mais féros, mais indomaveis e mais ligeiros do que elles. Ás vezes, Pelagio e os seus soldados desciam das montanhas para largas correrias, semelhantes á tempestade nocturna, e, como a tempestade, passavam pelas tendas dos arabes ou pelas aldeias, despovoadas de christãos, onde os infiéis começavam a fazer assento. Alta noite ouvia-se ahi um gemer [167] de moribundos, via-se o brilhar do incendio. Era o bulcão do deserto que rugia por lá. Ao amanhecer tudo estava tranquillo; porque, bem como a procella, Pelagio era repentino e destruidor e só escrevia na terra com os caractéres sanguinolentos de ruinas e mortes a noticia da sua quasi invisivel passagem.

Não assim Theodemiro. Depois da batalha, os restos das tiuphadias desbaratadas haviam-no proclamado successor de Ruderico. Era de ferro e espinhos a coroa que se lhe offerecia sobre a campa do imperio godo. Acceitou-a; porque em acceitá-la havia mais abnegação que orgulho. Emquanto Tarik, rendida Toletum, subjugava uma parte da Carthaginense, Musa, o amir d'Africa, desembarcando nas costas da Hespanha com um novo exercito, rendia Hispalis e, atravessando o Ana, submettia ao jugo do khalifa todo o occidente da peninsula iberica. As reliquias do exercito godo, que não haviam podido resistir a Tarik, muito menos poderiam impedir a passagem do amir. Assim, Theodemiro, ajunctando esses soldados dispersos, acolhera-se ás serranias d'Ilipula, na extremidade oriental da Betica. Musa, porém, enviara contra elle seu filho Abdulaziz, um dos mais famosos guerreiros do Islam. Apesar da superioridade [168] do exercito arabe, a lucta fora longa e terrivel. Theodemiro succumbira por fim; mas, posto que vencido, o seu valor obrigara os mosselemanos a concederem-lhe vantajosas condições de paz. Os vastos dominios que ainda possuia foram-lhe conservados, reconhecendo elle a supremacia do amir, e os godos poderam, ao menos nesse canto da Betica, achar uma parte da segurança e repouso que faltava no resto da Hespanha, onde o alfange da conquista assignalava todas as frontes com o ferrete da servidão e reduzia a montões de ruinas as cidades, nas quaes o espirito do christianismo e da liberdade ousava reluctar contra o dominio do khalifa e contra a religião do koran.

Theodemiro reinou largo tempo nos districtos orientaes da Betica, mas abandonado pelos mais nobres guerreiros, para quem a paz com os infiéis seria incomportavel deshonra. As montanhas das Asturias eram o verdadeiro e unico refugio da independencia goda. Em volta de Pelagio ajunctavam-se todos os homens esforçados que não tinham ainda desesperado da providencia e da propria espada. Muitos delles adormeceram para sempre nas solidões daquelles agrestes escondrijos, sem que vissem verificar-se as suas [169] esperanças; outros, porém, saudaram ainda a aurora do dia da vingança e poderam dizer, morrendo:—a Hespanha será salva!

Era passado um anno depois da batalha do Chryssus. O numero dos companheiros de Pelagio augmentava diariamente com os homens generosos que, depois da paz de Theodemiro com os arabes, o deixavam, para salvarem a sua independencia nos fraguedos das Asturias e da Cantabria. Estes soccorros continuos fortaleciam a constancia do moço guerreiro, que via crescer e sussurrar a torrente dos invasores em volta das suas montanhas. Abdulaziz, o valente filho de Musa, subjugara a Lusitania e a Carthaginense e, saqueando as cidades opulentas do norte que lhe abriam as portas, mettia a ferro e fogo as que tentavam resistir-lhe. Os rolos de fumo que se alevantavam das povoações incendiadas mostravam aos cavalleiros de Pelagio que já pelos campos gothicos fluctuava triumphante o estandarte de Mohammed. Rugindo de colera ao contemplarem este espectaculo, apertavam contra o peito a cruz das espadas. Então, sentiam escorregarem-lhes as lagrymas pelas faces tostadas, e descer-lhes com ellas aos seios d'alma a resignação e a esperança na piedade de Deus.

[170] Debaixo d'um semblante severo, mas sereno, Pelagio sabía esconder a amargura que lhe trasbordava do coração. No viço da juventude, o espirito lhe encanecera em meio dos dolorosos successos da sua ainda tão curta vida. A todas as maguas communs se lhe accrescentavam outras particulares, porventura mais pungentes. A maior parte dos seus companheiros haviam trazido para as Asturias os paes decrepitos, os filhos e as esposas, todos aquelles por quem repartiam os affectos do seu coração. Elle, porém, não pudera salvar uma irman que adorava e que Favila, expirando, entregara em seus braços, para que fosse o defensor e o abrigo da que ficava orphan no mundo. Ao sair de Tárraco, para se ir ajunctar á hoste de Ruderico, o mancebo deixara Hermengarda nos paços paternos, encommendada á guarda de alguns velhos buccellarios de seu pae. Quando, depois da batalha juncto do Chryssus, se acolhera ás montanhas, onde só podia conservar a liberdade, Pelagio avisara sua irman do logar em que existia e lhe communicara todos os meios de penetrar n'aquella quasi inaccessivel guarida. A resposta d'Hermengarda foi digna de uma neta dos godos: dizia-lhe que brevemente sería com elle; porque preferia [171] um covil de feras habitado por Pelagio ás delicias de Tárraco, sobre a qual não tardaria, talvez, a pesar o ferreo jugo dos mosselemanos. Com os buccellarios que lhe deixara, ella ía atravessar a Hespanha, encaminhando-se a Legio, onde devia chegar dentro de poucos dias.

Esta carta d'Hermengarda produzira crueis receios no animo do mancebo. Sabía que os arabes, derramados já pela Gallecia, não tardariam a envolver na torrente das suas assolações a antiga cidade romana: elle, que experimentara qual era a furia dos guerreiros do oriente, compadecia-se das vans esperanças de resistencia que os habitantes de Legio alimentavam ainda. De feito, um dia, em que enviara alguns cavalleiros pelos diversos caminhos que Hermengarda poderia seguir na sua arriscada e longa peregrinação, estes voltaram sobre a tarde com uma bem triste nova. Os arabes, capitaneiados por Abdulaziz, haviam chegado juncto aos muros daquella forte povoação, e poucas horas lhes tinham bastado para hasteiarem nas suas torres o estandarte de Mohammed e para passarem á espada os seus defensores. Deixando ahi uma das tribus bereberes, o exercito dos conquistadores guiara rapidamente para [172] a Tarraconense, e os esculcas godos haviam escapado a custo aos almogaures arabes, desapparecendo entre os desvios das serras e espreitando das apertadas portellas o caminho que seguia a multidão dos infiéis, os quaes lhes pareceu dirigirem-se para o lado do celebre mosteiro da Virgem Dolorosa. Quanto á irman de Pelagio, nenhuns vestigios haviam encontrado da sua passagem, nenhuma esperança traziam.

Taes foram as novas que os cavalleiros enviados aos valles além de Legio deram ao moço guerreiro, que já os esperava impaciente em uma das gargantas do Vinnio. Cheio de tristeza, Pelagio voltou então para a sua morada selvatica, para o escondrijo pelo qual havia tanto tempo trocara os paços paternos da esplendida Tárraco. Durante muitas horas, no meio do denso nevoeiro acamado sobre as encostas, pelas sendas tortuosas das montanhas, os cavalleiros que seguiam o duque de Cantabria não ousaram quebrar-lhe o doloroso silencio. Apenas, pela calada da noite negra e fria, soava lá ao longe o ruido do Sallia, de cujas margens por vezes se approximavam. O sussurrar, porém, da corrente, amortecido de quando em quando pela distancia, confundia-se com o ramalhar nas [173] sarças do lobo que fugia e com o brando rugir dos pinhaes, balouçados pela bafagem do vento. Estes sons vagos e confusos respondiam ao tropeiar dos ginetes, galgando as serras ou descendo lentamente e enfileirados á borda dos precipicios. O nevoeiro, mergulhando-se nestes, branqueiava-lhes os seios e revelava a sua existencia, deixando entre uns e outros como uma fita tortuosa e escura, que ía morrer mui perto no breve horisonte, encurtado pela cerração e pelas trevas.

Tarde, já bem tarde, uma luz baça e duvidosa bruxuleiou sem brilho adiante dos cavalleiros, que haviam rodeiado as montanhas, fazendo um largo semicirculo. Naquelle momento elles transpunham uma garganta medonha. Pelo contrario de outros logares que tinham atravessado, aqui as serras erguiam-se quasi a prumo de uma e d'outra parte da estreita passagem. Por meio della sentia-se o ruido de torrente caudal, que parecia vir da banda da luz que se via em distancia, e o nevoeiro, cada vez mais cerrado, pendurava-se em orvalho na barba espessa dos guerreiros e nos cabellos que lhes ondeiavam pelos hombros, saindo de sob os elmos.

Seguindo o curso do ribeiro, a cavalgada chegou, por fim, a um valle mais amplo, mas [174] tambem rodeiado de serras, cuja sombra gigante sería facil perceber, apesar da cerração, a quem olhasse attentamente em roda. A luz que parecia guiar os cavalleiros, a principio duvidosa, tenue, sumindo-se a espaços, crescia rapidamente e era já um grande clarão, que reflectia pelos penhascos, visiveis para um e outro lado, e scintillava no dorso da corrente. Um grito de esculca veio quebrar o silencio dos caminhantes, que durante tantas horas não tinham proferido uma unica syllaba.

As palavras—Covadonga e Pelagio!—repetidas pelos cavalleiros da frente responderam á voz do esculca, que, em pé e quedo sobre um outeirinho, os deixou passar ávante. Em breve chegaram ao termo da sua viagem. O valle findava em extensa penedia cortada a pique. Á direita uma subida ingreme, talhada na pedra viva, conduzia a um arco irregular aberto na penedia. Era a claridade do fogo acceso debaixo delle a que se derramava no valle e que ainda ía allumiar frouxamente o passo estreito que os cavalleiros haviam atravessado. Encostados aos rochedos, dispersos juncto á raiz daquella muralha altissima, estavam derramadas muitas choupanas, grosseiramente construidas de mal acepilhados troncos e cubertas de ramos e colmo. [175] Em frente de varias dellas ainda fumegava o brazido das fogueiras nocturnas daquella especie de arraial, onde ciciava o respirar compassado dos que dormiam. Ao pé da primeira e mais extensa choupana, Pelagio descavalgou; os mais seguiram o seu exemplo.

«Gutislo!—bradou um dos cavalleiros, cujo elmo se distinguia dos demais, porque era o unico em cuja superficie negra e baça se não reverberava o clarão avermelhado dos carvões accesos que ainda restavam de uma grande fogueira, juncto da subida ingreme que guiava á caverna.

Um homem agigantado e de fera catadura saíu da choupana murmurando sons mal articulados e que pareciam de agastamento. Dos recem-vindos os principaes começaram a subir vagarosamente a senda fragosa que tinham ante si emquanto Gutislo recolhia os ginetes, que mal se podiam meneiar de cansados, e os simples buccellarios se derramavam pelas tendas erguidas juncto dos penhascos.

Os cavalleiros chegaram ao topo da subida. A caverna de Covadonga, o palacio do duque de Cantabria, estava patente. Da esquerda, em vasta lareira, ardia um grosso [176] cepo de sobreiro, que conservava tepida e enxuta a atmosphera, naturalmente fria e humida: da direita, pelas quebras angulosas das rochas, viam-se deitados capacetes, saios de malha e muitas armas offensivas. Escabellos grosseiros, mesas de carvalho e alguns leitos de pelles d'animaes silvestres, amontoadas sobre a cortiça que servia de pavimento, completavam o adereço daquelle rude aposento. Todavia, as armas pulidas, ordenadas em feixes, e as stalactites seculares, penduradas do tecto, reverberando o clarão da fogueira, davam ao topo da lapa um aspecto esplendido, que de algum modo assemelhava esta habitação de feras a uma sala d'armas de paços afortalezados.

É alta noite: os cavalleiros que haviam acompanhado Pelagio dormem profundamente, estirados nos pobres leitos da gruta. Quem ouvisse os nomes desses rudes soldados saberia quaes eram os restos da mais illustre nobreza goda: eram muitos daquelles que, havia poucos meses, nos paços magnificos de Toletum passavam as noites em festas, os dias em banquetes e que, depois de existencia deleitosa, esperavam ir dormir, sob as arcarias das cryptas das cathedraes, nos tumulos soberbos de seus avós. E todavia, a conquista [177] reduziu-os á vida de barbaros e fê-los retroceder aos costumes duros e ferozes dos companheiros de Theoderik e de Ataulph; aos habitos de rudeza dos primitivos wisigodos.

O moço duque de Cantabria véla, porém. Assentado em um escabello juncto do lar acceso, com a face encostada ao punho, deixa balouçar a sua alma em tempestade de dolorosos pensamentos, lembrando-se de Hermengarda. Por mais de uma hora, Pelagio se conservara nesta situação, quando, ao voltar a cabeça, viu que mais alguem velava, como elle. O cavalleiro que ao chegarem chamara por Gutislo, em pé por detrás do escabello, com os braços cruzados e os olhos fitos na chamma, parecia meditar profundamente. No seu aspecto havia o que quer que fosse tenebroso e sinistro.

«Como assim!—exclamou o mancebo—ainda não buscastes o repouso? Depois de tão larga correria, não imaginava achar-vos ao pé de mim, que vélo, porque a amargura não consente que o somno me cerre as palpebras. Tendes, acaso, uma irman querida, uma esposa que muito ameis, por quem devais tremer, e que, talvez, neste momento seja victima das paixões desenfreiadas dos infiéis?»

«Não tenho ninguem no mundo:—respondeu [178] o cavalleiro, cujo aspecto se carregou ainda mais ao ouvir estas ultimas palavras:—mas não póde aquelle cujo coração é ermo desses affectos ser tambem infeliz?»

«Infelizes são todos os moradores de Covadonga—acudiu Pelagio:—mas o que á desventura commum ajuncta receios bem fundados pela honra ou, ao menos, pela vida daquelles que muito amou é mil vezes mais desventurado.»

«Duque de Cantabria, quando tiverdes medida por onde afferir ao certo o meu e o vosso coração podereis falar assim.»

«Te-la-hia, talvez, se conhecesse a historia da vossa vida: mas vós a cubrís de impenetravel mysterio.»

«Porque é o segredo mais sancto da minha alma—interrompeu com vehemencia o cavalleiro;—segredo que esta boca nunca revelará na terra.»

«Nem eu o exijo: longe de mim tal intento. A carta que me trouxestes de Theodemiro me assegura que sois um nobre gardingo: tanto bastou para que vos recebesse entre aquelles com quem reparto a minha caverna de foragido. Nunca vos perguntei, sequer, porque abandonastes um homem que de suas palavras vejo vos amava como irmão.»

[179] «Oh, quanto a isso, dir-vo-lo-hei—atalhou de novo o guerreiro, pondo a mão sobre o punho da espada.—Foi porque eu o cria um anjo de virtude e esforço, e elle era apenas um homem! Foi porque a paz que pactuou com os mosselemanos, honrosa aos olhos do vulgo, era, a meus olhos, infamia. Paz com o infiel? Ao christão só cabe fazê-la quando dormir ao lado delle somno perpetuo no campo de batalha; quando, ao lado um do outro, esperarem ambos que as aves do céu venham banqueteiar-se em seus cadaveres. Antes disso, não a comprehendo. Disse-lh'o, sem colera, sem injurias, ao abandoná-lo para sempre. Nesse momento algumas lagrymas correram destes olhos; porque a alma de Theodemiro era a ultima em que morava um affecto que respondesse aos meus; era o ultimo templo em que me sorria a esperança!»

E as lagrymas que elle dizia haver derramado nessa triste separação corriam, de novo, quatro a quatro pelas faces do guerreiro.

Apenas o gardingo proferira estas derradeiras palavras, o clarão avermelhado da lareira bateu subitamente no vulto agigantado de Gutislo, que surgira á boca da gruta e [180] parecia hesitar se devia ou não interromper o dialogo dos dous guerreiros.

«Velho lobo do Herminio, approxima-te—disse Pelagio em tom de gracejo, como que tentando affastar as tristes idéas que lhe opprimiam o espirito.—Que buscas a taes deshoras? Tiveste, acaso, em sonhos saudades das barrocas das tuas serras nevadas e creste que Covadonga era o antro de teu irmão, o javali?»

«O caçador das montanhas—replicou o lusitano, na sua linguagem pinturesca de barbaro—não estaria aqui, se a saudade dos logares em que nasceu lhe morasse no coração. Os homens d'além do mar lhe mataram ou captivaram mulher e filhos quando estes, por seu mal, n'um dia em que elle perseguia nos cimos da serra os lobos cervaes, ousaram descer com o rebanho aos valles do Munda. Por isso te seguí eu, oh godo: tu derramas o sangue dos homens d'além do mar, e eu quero derrama-lo tambem.»

«A que vens, pois, aqui?—replicou Pelagio, a quem as palavras do celta traziam de novo ao espirito a lembrança de que tambem elle era, talvez, orpham de irman querida.

«A dizer-te que um desconhecido chegou ao valle. Fala não sei de que nome godo, [181] como o teu; d'Hermengarda, me parece. Pede para te falar.»

«Onde está elle?—exclamou Pelagio, em cujos olhos brilhara a esperança misturada de temor.—Que venha! oh que venha breve!»

E, alevantando-se, encaminhou-se ligeiro para a entrada da gruta, d'onde Gutislo outra vez desapparecera. Antes, porém, que ahi chegasse, um velho, cujos trajos desordenados, rotos e cubertos de lodo davam indicios de ter atravessado largo espaço das serranias, entrou na caverna e, arrojando-se aos pés do duque de Cantabria, rompeu em soluços, sem poder proferir palavra.

N'um relance Pelagio o conhecera.

«Aldephonso! onde está Hermengarda? Buccellario! onde está a filha do teu patrono?»

O velho tentou responder; porém não pôde, e continuou a soluçar.

«Entendo-te: é morta! Nunca mais te verei, minha pobre irman!—murmurou o mancebo, escondendo o rosto entre as mãos.

Ao gardingo, que durante esta scena se conservara immovel, fugiu um gemido abafado. Depois, levou o punho cerrado á fronte, como se quizesse conter ahi uma idéa dolorosa que tentava resfolegar.

[182] Houve um largo espaço de temeroso silencio. O velho o quebrou por fim:

«Não; não é morta! Mas, porventura, ainda o seu fado é mais horrivel. Jaz captiva em poder dos infiéis. Não me foi dado salvá-la, e não quiz morrer sem vos dar esta nova cruel. Agora...»

Um brado de Pelagio atalhou as palavras do buccellario suffocadas pelo choro.

«As minhas armas e o meu cavallo! Que me deem o meu frankisk! Velho vilissimo, já que não soubeste deixar-te despedaçar juncto della, dize, ao menos, onde poderei encontrar os pagãos que captivaram Hermengarda.»

Lavado em lagrymas, o ancião narrou-lhe em breves palavras os successos que se haviam passado no mosteiro da Virgem Dolorosa. Elle tinha feito tudo para a resolver a tentar a fuga. «Ainda na crypta fatal—concluia Aldephonso—através das grades que me embargavam os passos, por vós, pelas cinzas de vosso pae, lhe suppliquei de joelhos que me acompanhasse. Os velhos buccellarios de Favila, no meio do tumulto, a teriam, talvez, posto em salvo! Sorriu, porém, das minhas esperanças e conservou-se firme no seu proposito. Mas Deus tinha ordenado [183] que, em vez de obter o martyrio, cahisse nas mãos dos agarenos. De todos os que vinhamos em sua guarda, só eu, acaso, pude escapar, misturado com os soldados de Transfretana. Assim, segui por algum tempo os arabes, que se encaminham para o lado do Segisamon. Ao anoitecer, embrenhei-me nas montanhas. Um pastor que encontrei me serviu de guia, até que cheguei aos pés de meu senhor para lhe pedir a morte e para lhe jurar que estou innocente.»

«De pé, cavalleiros! Aos infiéis, em nome de Christo!—gritou o duque de Cantabria, com uma voz que retumbou nas profundezas da caverna.

Habituados ás subitas arrancadas nocturnas contra os arabes, quando vagueiavam em correrias longinquas, os companheiros de Pelagio ergueram-se de salto, ainda mal despertos, e por uma especie d'instincto lançaram mão das armas penduradas por cima de suas cabeças. Era solemne e tremendo o espectaculo que apresentava a gruta naquelle alçar repentino de tantos homens, no brilho das armas que relampagueiavam á luz da fogueira e tiniam umas nas outras. Entretanto Pelagio ordenava a Gutislo que despertasse os homens d'armas espalhados pelas choupanas [184] do valle e fizesse dar o signal d'encavalgar. Era necessario partir.

No meio, porém, da revolta, havia alguem que se conservava quedo e que parecia tranquillo. Era o gardingo desconhecido. Encostado á parede anfractuosa da gruta e demudado o gesto, contemplava aquella scena com o vago olhar de quem alongara o pensamento para mui longe d'alli. Emquanto todos os demais cavalleiros rodeiavam Pelagio, indagando inquietos a causa daquelle subito apellidar para uma correria nocturna, elle só ficara immovel e como indifferente ao tumulto que as vozes do duque de Cantabria tinham excitado entre os seus guerreiros.

«Qual de vós outros cavalleiros—dizia Pelagio aos que o rodeiavam—duvidará um momento de que, se um mensageiro chegasse e lhe dissesse: «vossa esposa, vossa filha, vossa irman cahiu em poder d'infiéis» eu hesitasse em ir ajudá-lo a arrancar essa victima querida á bruteza cruel dos pagãos? Nenhum; porque mais d'uma vez tenho arriscado a vida para curar saudades e amarguras dos desterrados como eu. Deu-me o céu uma irman; deu-me o ultimo suspiro de meu pae uma filha; deu-me a ternura por essa virgem, cuja [185] imagem vive eterna neste coração virgem como ella, uma esposa. Quando a triste innocente vinha abrigar-se á sombra do escudo de seu irmão, os infiéis roubaram-ma. Viuvo e orpham, appello para os ultimos corações generosos da Hespanha. Por Deus, que me ajudeis a salvar a minha pobre Hermengarda. Como tua filha Brunehilde, ella é formosa, Gudesteu! Como tua esposa Elvira, ella é boa e carinhosa, Algimiro! Como tua irman, Munio, ella é innocente e pura. Godos, por tudo quanto amaes, salvae-a, salvae a mesquinha!»

O nobre esforço do mancebo desapparecera ante a idéa dolorosa da sorte que a providencia reservara á desventurada filha de Favila. Elle estendia as mãos unidas para os cavalleiros, como uma creança timida que implora compaixão.

«Partamos!—exclamaram ao mesmo tempo os nobres foragidos.—Tua irman será salva ou nenhum de nós voltará mais á gruta de Covadonga!»

Uma voz trémula, mas retumbante, trovejou por detrás delles:

«Não partireis d'aqui!»

Voltaram-se. Era o gardingo.

«Quem o ordena?—bradou Pelagio, com [186] toda a energia que esta inesperada resistencia despertara subitamente nelle.

«Um homem—replicou o desconhecido, atravessando o circulo dos guerreiros que rodeiavam o duque de Cantabria e lançando em volta olhos altivos;—um homem cujo coração é ha longo tempo morto, porque as paixões o queimaram; mas cuja intelligencia por isso mesmo é mais fria. Quantos sois vós? Quantos buccellarios dormem pelas tendas desse valle? Apenas alguns centenares de lanças poderiam, ao todo, transpôr comvosco os passos das serras. Os infiéis e os renegados que os servem quantos são? Se podeis contar as estrellas que ora recamam o céu, podereis dizer-me o numero delles. Tu, Pelagio, braço de ferro, coração de bronze, quem és tu? O guardador das ultimas esperanças da cruz e da patria. Quem te deu, pois, o direito de correres a morte certa? Quem te deu o direito de apagar no sangue dos ultimos godos o unico facho que alumia as trevas do futuro da escravisada Hespanha?»

«E a ti—interrompeu furioso e arrancando meia espada o violento Sancion—quem te incumbiu de nos dizeres: «não saireis d'aqui? Quem és tu, que, vindo não sei d'onde, pretendes [187] dominar como senhor aquelles que só obedecem a Deus?»

O desconhecido olhou para o movimento ameaçador de Sancion, e pelo rosto passou-lhe um sorriso desdenhoso. Cruzou os braços e respondeu com voz lenta e solemne:

«Por minha boca falaram milhares de godos que gemem no captiveiro e que voltam de continuo os olhos para os cerros das Asturias, onde apenas fulgura tenue o sancto fogo da liberdade: falaram por minha boca as aras do Senhor calcadas pelos pés dos pagãos, as imagens do Christo derribadas no lodo, os muros ennegrecidos das cidades incendiadas. É isto tudo que vos diz:—não saireis d'aqui!—Perguntas quem sou? Dir-t'o-hei. O ultimo homem que, juncto do Chryssus, viu, combatendo, a face dos arabes vencedores, emquanto os valentes fugiam; o homem que tentou morrer com a patria, e que a mão de Deus salvou para neste momento vos dizer: «não saireis d'aqui! Queres saber quem eu sou? Lê, Pelagio, o que escreveu ahi Theodemiro. Dize-lhe depois qual é o meu nome!»

E, tirando da escarcella uma tira de pergaminho dobrada, abriu-a e entregou-a a Pelagio.

[188] O duque de Cantabria correu-a pelos olhos e, deixando-a cahir em terra, murmurou:—«Meu Deus, o cavalleiro negro!»

Os godos apinhados em roda recuaram alguns passos, e houve um momento de ancioso silencio.

«Anjo ou demonio, que nos explicas um mysterio por outro mysterio—exclamou, emfim, Pelagio visivelmente perturbado:—christãos e arabes lembram-se ainda das tuas incriveis façanhas nas margens do Chryssus. Mil vezes eu proprio tenho dicto: dez como elle haveriam salvado o imperio de Theoderik! Devemos obedecer-te, se és um homem, como dizes, porque vales mais que nós. Se és o anjo que preside ao fado da Hespanha, mais submisso ainda será o nosso obedecer. Mas que mal te fez minha desgraçada irman?...»

«Que mal me fez tua irman?—atalhou com vehemencia o gardingo.—Nenhum!... E quem te disse que não quero, que não posso salva-la, eu que não sou anjo, que sou, como tu, um homem? Quaes d'entre vós—proseguiu, voltando-se para os cavalleiros que o rodeiavam—sois n'este mundo sós e não tendes quem na morte regue com lagrymas a terra que vos cobrir? Quaes de vós sois, [189] como eu, desterrados no meio do genero-humano? Que os orphams de coração ergam a dextra para o céu, onde só ha um seio que lhes receba os gemidos de amargura, o seio immenso de Deus!»

Doze guerreiros, e entre elles o fero Sancion, alevantaram a dextra para o ar á voz imperiosa do gardingo.

«A cavallo!—gritou este, apertando o largo cincto da espada e enfiando no braço a ferrea cadeia do frankisk.—Pelagio! se dentro de oito dias não houvermos voltado, ora ao Christo por nós, que teremos dormido o nosso ultimo somno, e chora por tua irmã, cujo captiveiro já ninguem, provavelmente, quebrará, senão o anjo da morte. Partamos!»

Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamente a caverna e desappareceu nas trevas exteriores: os doze guerreiros escolhidos seguiram-no machinalmente, porque os seus meneios e gesto os tinham fascinado, ao lembrarem-se de que este homem era o cavalleiro negro. O duque de Cantabria, subjugado tambem pela especie de mysterio solemne que cercava todas as acções d'este ente extraordinario, nem ousou perguntar-lhe por que meio intentava salvar Hermengarda. [190] Todavia, uma voz intima e irresistivel lhe dizia: «resigna-te e confia». Confiado e resignado esperou, portanto, o cumprimento das promessas do incognito gardingo.



XIV

A NOITE DO AMIR



Arrebatada no pallor das trevas.

Breviario Gothico—Hymno de S. Geroncio.


Era ao cahir do dia. O nordeste secco e regelado corria as campinas do espaço, onde, através da atmosphera purissima, scintillavam as estrellas. O clarão de Segisamon incendiada reflectia de longe nas brancas tendas dos arabes, acampados a bastante distancia dos muros da povoação destruida. Em [192] volta do arraial, pelas coroas dos outeiros, accendiam-se as almenaras, a cuja luz tenue, comparada com a do incendio de Segisamon, se viam passar os atalaias nocturnos. Abdulaziz, semelhante a cometa caudato, seguia a sua orbita d'exterminio, deixando após si vestigios de fogo. O exercito devia ao romper da alva internar-se nos valles da Tarraconense.

Segisamon tinha na vespera offerecido um espectaculo semelhante ao de muitas outras cidades da Hespanha levadas á escala pelos mosselemanos. Não só a cubiça e o desenfreiamento da soldadesca multiplicavam ahi as scenas de rapina, de violencia e de sangue, mas tambem a politica dos capitães arabes procurava augmentar a terribilidade desses dramas repetidos para quebrar os animos dos godos e persuadi-los á submissão. O dia precedente a esta noite que começava tinha sido consagrado pelos vencedores ao repouso, depois de um duro lavor de morte e ruinas. Os jogos, os banquetes, as dissoluções de todo o genero haviam recompensado brutalmente o esforço brutal dos destruidores de Segisamon.

Ás cohortes do renegado Juliano tocava nesta noite a vigia do arraial: eram godos os que guardavam o campo, onde as virgens [193] da Hespanha tinham sido violadas; onde a cruz captiva fora mais uma vez ludibriada; onde os velhos sacerdotes haviam soffrido contentes o martyrio no meio das affrontas. Aquelles homens perdidos, rodeiando esse montão de abominações, ainda não fartos dos deleites infernaes em que tinham tido parte com os infiéis, embriagavam-se, bebendo pelos vasos sagrados, e escarneciam blasphemos a crença da sua infancia no meio de hedionda ebriedade.

O murmurio immenso do arraial foi amortecendo gradualmente com o fechar da noite. Em breve, não se ouviu nas tendas do Islam mais que o respirar lento de tantos milhares d'homens adormecidos nos braços do goso. Juncto, porém, das almenaras as risadas dos soldados do conde de Septum, os cantos obscenos inspirados pela embriaguez, as disputas ardentes do jogo, em que o ouro corria de mão em mão, soavam ainda em volta do silencio do campo. Pouco e pouco, este mesmo ruído foi affrouxando, ao passo que os fachos accesos nas chapadas dos outeiros esmoreciam. A escuridão e o silencio reinaram, emfim, até nas atalaias. Os soldados godos, cansados de dissoluções, haviam tambem repousado. E para que prestaria [194] velar? O terror que inspiravam os arabes era o melhor guardador do arraial. Como ousariam os christãos, medrosos atrás dos muros dos seus castellos, salteiar o campo de Abdulaziz? As vigias e almenaras eram apenas uma velha formula militar, cuja significação a serie não interrompida dos triumphos até então alcançados tornara inintelligivel.

Pela calada, porém, da alta noite e no meio das trevas que cobrem, como amplo manto, aquelle turbilhão d'homens de guerra, descansando então para ao romper do sol rugir de novo impetuoso, vê-se ainda, através das telas mal unidas de uma tenda mais vasta, reverberar vivo clarão, e ouve-se o rir alegre, o altercar, o tinir argentino das taças; todos os indicios, emfim, de que a orgia se prolongou ahi até mais tarde. Ao redor da tenda jazem por terra, com os alfanges nús junctos a si, alguns soldados da guarda de Abdulaziz, composta dos guerreiros mais temidos do exercito, os negros do remoto paiz de Al-Sudan. Nos ouvidos delles restruge debalde o alto ruído que soa do interior do pavilhão. Dormem, tambem, profundamente, e apenas á porta da tenda um delles vela immovel encostado á acha d'armas.

[195] A tenda era, de feito, a do esforçado filho de Musa. A mesa do banquete ainda vergava com os restos das iguarias: os brandões já gastos e os candieiros mortiços derramavam uma claridade suave pelo aposento. Reclinado sobre um almatrah cuberto de preciosa alcatifa do oriente, o amir escutava o mais moço dos cheiks que estavam juncto delle, o qual, ora cantava os versos voluptuosos de Zohèir, que accendiam a imaginação do joven guerreiro, ora lhe repetia os antigos poemas licenciosos e satyricos de Ibn-Hagiar, que elle applaudia com estrondosas risadas.

O conde de Septum e os mais capitães godos alliados dos agarenos conservavam-se ainda nos logares que haviam occupado durante o banquete. Para aquella extremidade da vasta mesa viam-se algumas amphoras tombadas e outras ainda cheias dos vinhos mais preciosos da Hespanha: as taças que gyravam ao redor eram as que produziam o tinir que soava fóra, no meio do ruído das falas, dos gritos, e dos cantos monotonos do cheik Abdallah.

Um guerreiro, cuja barba crespa e cerrada lhe cahia como frócos de neve sobre os anneis dourados do saio de malha, estava assentado [196] á direita de Juliano. A brancura dos seus cabellos era o unico signal que se lhe enxergava de uma larga peregrinação na terra; porque o rosado da tez, a viveza dos olhos azues, o garbo nos meneios e a robustez dos membros agigantados mostravam n'elle mais que muito a compleição vigorosa de homem de boa idade. Era Oppas, o bispo Oppas, que se esquecera do sacerdocio, como se havia esquecido da patria, e que, habituado á vida solta dos arraiaes, excedia já na violencia de paixões ignobeis os mais desenfreiados e barbaros chefes das tribus semi-selvagens da Africa. Muitos outros tiuphados e quingentarios, assentados ao longo da mesa, davam mostras de infernal alegria, despejando as taças de prata, que os libertos lhes enchiam de novo para de novo rapidamente se esgotarem.

«Vêde os nazarenos maldictos—dizia Abdulaziz em voz baixa ao cheik Abdallah, olhando de través para os godos.—O amor da embriaguez nunca os deixará ver a luz que mana das paginas do divino koran. Para elles o fructo da vide será sempre a ponte estreita, da qual, ao passarem na morte, se despenharão no inferno.»

«E que nos importam as suas almas tisnadas—replicou [197] Abdallah—se elles nos ajudam a sujeitar á lei do sancto propheta o imperio de Andalús? Sem Deus e sem patria, deixae-lhes ao menos a sua bruteza.»

O bispo d'Hispalis percebeu que falavam delle e dos outros godos, porque os cheiks haviam volvido para lá os olhos. Erguendo-se então com a taça em punho, exclamou em arabico:

«Ao invencivel Abdulaziz; a um dos mais nobres vingadores de Witiza!»

«Alfaqui dos romanos—respondeu o amir—a lei do propheta não consente que eu acceite a saudação que atravessou por labios tinctos no licor amaldicçoado por elle.»

«E que montam as maldicções do teu propheta?—replicou Oppas em tom de gracejo.—Devemos nós por isso deixar de saudar o illustre filho de Musa com o abençoado e generoso vinho dos ferteis outeiros da Hespanha?...»

«Infiel!...—interrompeu o amir, em cujos olhos scintillara o despeito. Depois, reportando-se, proseguiu em tom brando, mas firme, como quem queria ser promptamente obedecido:—Nobres cavalleiros do Gharb, valentes cheiks do Negid, de Berryah, e d'Almoghreb, a noite vai alta, e ao romper da [198] manhan é necessario partir. Que o somno vos desça sobre as palpebras nas vossas tendas de guerra!»

A estas palavras, godos e arabes, alevantando-se, foram sahindo da tenda vagarosamente e em silencio. Só o bispo d'Hispalis, apertando a mão de Juliano, murmurou:—«Oh, quanto fel se mistura com o prazer da vingança! Mas cumpra-se o nosso fado.»

Ao atravessarem o arraial, os dous filhos renegados da Hespanha notaram que nos cabeços das almenaras a escuridão era tão profunda como no resto do campo. Tudo, porém, estava tranquillo. Apenas a pouca distancia lhes pareceu verem passar como sombra um cavalleiro, que se encaminhava para o lado do pavilhão de Abdulaziz. Era, provavelmente, algum soldado d'Al-Sudan, que, transnoitado, se retrahia para o seu alojamento juncto da tenda do amir.

Entretanto este, apenas só, começou a caminhar agitado e a passos largos de uma até outra extremidade do aposento, que ricos pannos da Syria dividiam dos que occupavam os servos. No seu gesto, turbado por affectos encontrados, passavam successivamente os vestigios destes: ora a indignação lhe pesava nos sobrolhos confrangidos; ora [199] lhe sorria nos olhos um pensamento voluptuoso; ora a compaixão parecia suavisar-lhe esse feroz sorrir. Por fim, o moço Abdulaziz, como vencido pela tempestade da sua alma, assentou-se no almatrah e cobriu o rosto com ambas as mãos. Conservou-se assim por largo tempo, em silencio e quedo, até que, a final, as suas paixões triumpharam e rebentaram com violencia.

Batendo as palmas, o amir bradou:—«Al-Fehri!»

Um dos pannos que dividiam a tenda em varias quadras alevantou-se de um lado, e um vulto negro e disforme, que parecia arrastar-se com difficuldade, encaminhou-se para o amir. Era como um tronco de gigante pelo espadaúdo do corpo, pela amplidão do ventre e pela desmesurada grossura da cabeça, onde só lhe alvejavam os olhos embaciados. O monstro, apenas deu alguns passos, parou, cruzando sobre o peito os braços grossos e curtos, semelhantes a dous madeiros informes.

«Eunucho—disse Abdulaziz com voz agitada—conduze aqui a ultima das minhas captivas que especialmente confiei de ti.»

O vulto recuou e, franzindo a especie de reposteiro que lhe dera passagem, desappareceu. [200] Passados alguns momentos, tornou. Uma figura de mulher, cujas fórmas mal se podiam adivinhar através d'um raro cendal que a cubria até os pés, acompanhava-o. Com passo firme, ella se encaminhou para Abdulaziz, e o eunucho desappareceu de novo.

«Filha dos christãos—disse em lingua romana o amir—os dous dias que me pediste para chorares o teu captiveiro passaram. Resolveste, finalmente, ser a mais amada entre as mulheres de Abdulaziz; ser a invejada das donzellas do oriente e quasi a rainha das provincias de Andalús, porque acima de Abdulaziz só dous homens existem na terra, o amir d'Almoghreb, aquelle que me gerou, e o descendente do propheta, o que rege todo o imperio dos crentes?»

«A minha resolução é morrer, quando te approuver:—replicou a captiva com serenidade;—porque essa resolução ha muito que eu a tomei. Enganei-te, pagão, quando te pedi dous dias para chorar! Escarneci de ti, porque te abomino. Esperava que um braço de guerreiro que vale mais que o teu viesse arrancar-me do captiveiro. Ai de ti, se elle soubesse qual tinha sido o meu fado! Folga, pagão, de que a sentença fulminada por Deus contra os filhos da Hespanha me abrangesse [201] tambem. Nesta hora não fora eu; foras tu quem deveria perecer. Mas elle não pôde salvar-me: só me resta dizer-te: infiel, tu és maldicto de Deus: principe dos arabes, tu és servo dos demonios: homem que me pedes amor, sabe que eu te detesto.»

«Dize tudo:—interrompeu o amir, apertando com força o braço da captiva e fitando nella os olhos, onde luctavam amor profundo e colera violenta:—exhala em injurias a tua dôr orgulhosa: sê, até, blasphema; mas não digas que detestas Abdulaziz; não digas que amas um godo e que elle fora capaz de te vir roubar da minha tenda. Desgraçado do nazareno que se lembrasse de amar-te depois que Abdulaziz te chamou sua. Onde se iria esconder esse malaventurado filho de uma raça vil e covarde, que podesse escapar a este braço, o qual ao estender-se arranca pelos fundamentos os vossos castellos e reduz a pó os templos do vosso Deus e os muros das vossas cidades?»

«Aquelle que eu cria viesse em meu soccorro—tornou com voz firme a captiva—não se esconderá de ti no dia em que estiverem em volta delle todos os seus irmãos em esforço e amor da terra natal; porque nesse dia das grandes vinganças vê-lo-has [202] face a face. Muitas vezes os teus guerreiros têem fugido diante delle; muitas vezes o incendio dos arraiaes pagãos tem ajudado o incendio das nossas cidades a alumiar as trevas da noite, e a sua mão foi a que lançou o facho sobre a tenda do agareno. Esse, ao menos, se ainda se esconde, não é por temor de ti, nem dos teus cavalleiros, que, tantos por tantos e ainda em dobro, muitas vezes tem visto fugir.»

«Entendo-te, altiva filha dos godos:—replicou Abdulaziz.—Falas do que vós outros chamaes Pelagio, e que só de noite ousa saír das suas solidões das montanhas para acommetter as tribus d'Almoghreb que fizeram assento no conquistado Gharb ou para assassinar os cavalleiros do deserto transviados. Apenas Sarkosta e Tarkuna vissem fluctuar sobre as suas muralhas os estandartes do Islam, eu iria arrancá-lo dos seus escondrijos para o punir. Mas tu abbreviaste os dias do foragido nazareno. Dentro de pouco o seu cadaver servirá de pasto ás aves do céu, porque amou aquella que eu escolhi.»

«Deus defenderá meu irmão:—disse titubeiando a donzella, cuja firmeza começava a abandona-la, receiando ver cumprida a ameaça do amir.

[203] «Irman de Pelagio?! Oh, repete-o mil vezes! São as prisões do sangue que te unem ao cruel inimigo dos crentes?»

«Porque finges ignora-lo? Os velhos cavalleiros que me acompanhavam e que comigo foram captivos no mosteiro que profanaste já o terão revelado.»

«Nem as promessas, nem os tormentos poderam tirar de suas bocas o teu nome e a tua jerarchia. Mas jura-me que és a irman de Pelagio, e elle poderá esquivar, se quizeres, o seu tremendo destino.»

«Fora inutil negar o que eu propria confessei. O meu nome é Hermengarda: o duque de Cantabria, Favila, foi meu pae, e Pelagio é o filho e successor de Favila.»

O amir ficou alguns momentos calado com o braço d'Hermengarda preso na mão robusta, que ella sentia tremula com o tumultuar dos affectos que agitavam o coração do arabe. Este, por fim, exclamou:

«Pelo precursor do sancto propheta; por Issa[1], Hermengarda, que, se amas teu irmão, me digas:—eu serei tua. Estas palavras o farão senhor da mais rica provincia do Andalús, daquella que elle escolher para reinar como amir: os guerreiros que o seguem [204] serão os walis das suas cidades, os kaiyds dos seus castellos: dos meus thesouros metade será delle. As escravas que muito hei amado não mais verão sorrir-lhes o rosto de seu senhor. Tu serás rainha do meu coração; rainha sem rival; senhora de tudo sobre quanto se estende o poder de Abdulaziz, do filho querido do invencivel Musa. Profere só essas palavras, e a sorte de Pelagio será invejada pelos nossos mais illustres guerreiros!...»

No gesto do agareno todos os vestigios da colera tinham desapparecido: só nelle se lia a anciedade de um amor immenso, que precisa, mais que do goso brutal, de um sentimento accorde com os proprios sentimentos.

Mas Hermengarda só vira affronta e opprobrio nas palavras do amir, e o odio a este homem, cuja natural fereza e orgulho o amor convertera em brandura e, talvez, em submissão, tornou-se ainda maior ao ouvi-lo. Recobrando toda a energia da sua alma, que por um momento vacillara, respondeu, olhando para Abdulaziz com ar de desprezo:

«Nem sempre os valentes conquistadores da Hespanha podem achar traidores que vendam por ouro e honras infames os sepulchros de seus paes e os altares do Senhor. Não! [205] Pelagio não acceitará nunca um logar entre os filhos de Witiza e o conde de Septum; porque Deus o guarda para vingador de seus trahidos irmãos. Infiel, grande era o preço que davas por uma filha da serva raça dos godos: guarda-o para o empregares melhor; para comprares as nobres e livres donzellas do teu paiz. Tudo o que me offereces é vil; porque vem de ti, maldicto. Só uma offerta te acceito; ha muito que t'a pedi: a morte... a morte, e que seja breve. Abomino-te, destruidor da Hespanha... Não! Enganei-me! Desprezo-te, salteador do deserto.»

Com os labios brancos e o olhar desorientado, o amir ouvia as palavras d'Hermengarda, e a sua fronte enrugava-se como a face do oceano ao passar do furacão. Tremendo silencio reinou por alguns momentos na tenda. Com um rir abafado e diabolico, o amir o rompeu por fim:

«A morte?—Não terás a morte: juro-t'o pelo sepulchro do propheta. Porque a abelha zumbiu aos ouvidos do caçador faminto, arrojará elle para longe o mel do seu favo e esmagará o insecto? Tu serás minha, mulher orgulhosa; porque o meu amor é, como o meu odio, inexoravel e fatal. Depois, quando o incendio que me devora estiver extincto; [206] quando o tedio morar para mim nos teus braços, irás cevar nas tendas dos bereberes a sensualidade brutal dessa soldadesca selvagem. Póde ser que teu nobre irmão venha entretanto salvar-te!... Guarda para então as suberbas; que hoje, pobre escrava, só te resta obedecer á voz do teu senhor.»

Ao dizer isto, Abdulaziz, segurando com a dextra o braço d'Hermengarda, apertou-o com tanta violencia que a desgraçada deu um grito de agonia e cahiu de joelhos aos pés do arabe. O amir ergueu-a e, impellindo-a com força, ao mesmo tempo que despedaçava com a esquerda o raro cendal que lhe velava o rosto, a fez cahir pallida e trémula sobre o almatrah. Os labios da donzella quizeram ainda proferir algumas palavras—porventura uma supplica; mas apenas murmurou sons inarticulados, que expiraram em arquejar doloroso.

No seu furor, o filho de Musa não sentira um rugido de colera que respondera ao grito d'Hermengarda, nem um ai passageiro e sumido, que, segundo era intimo, parecia de homem a quem a ponta de um punhal rasgara subitamente o coração. Nas telas, porém, que dividiam o aposento do logar d'onde pouco antes saíra o eunucho e que ficavam [207] fronteiras á entrada principal da tenda uma figura humana se estampou negra sobre o chão brilhante da tapeçaria. O amir, volvendo casualmente os olhos, a viu. Crescia rapida. Escutou. Passos ligeiros soavam no vasto aposento. Voltou-se. Mas apenas pôde erguer o braço: vira reluzir no ar um ferro: vira um vulto cuberto d'armas semelhantes ás dos cavalleiros d'Al-Sudan: sentiu um golpe que lhe partia o braço erguido e, batendo-lhe ainda no craneo, lhe retumbava no cerebro. Deu um grito, fechou os olhos e cahiu aos pés d'Hermengarda, manando-lhe o sangue da fronte. O monstro humano que conduzira alli a irman de Pelagio, assomou então no topo interior da tenda: o brado do amir o attrahira. Vendo seu senhor derribado e juncto delle o que o feríra, o eunucho fez uma horrivel visagem, como pretendendo falar; mas sómente soltou um rugido acompanhado de um gesto d'ameaça. Segundo o atroz costume do oriente, Al-Fehri, destinado desde a infancia ao serviço mysterioso do harem, fora condemnado em tenros annos a nunca imitar a voz humana. Privado da lingua, as suas expressões eram acenos ou afflictivos e inarticulados rugidos.

O cavalleiro observava-o. Fê-lo sorrir o [208] ademan feroz e ameaçador do eunucho. Tinha previsto todas as difficuldades daquella arriscada empreza e contava com o seu esforço e frieza d'animo para as vencer. Ligeiro, travou de uma das tochas que ardiam juncto da mesa do banquete e chegou-a ás ricas tapeçarias que forravam a tenda. A chamma enredou-se na tela: um rolo de fumo espesso trepou em espiraes, ennegrecendo-lhe os recamos e lavores brilhantes. Em breve, as labaredas abraçadas com os feixes de lanças, com os pannos custosos, que ondeiavam torcendo-se, treparam até o cimo e, curvando-se espalmadas sob o tecto, romperam em linguas ardentes aprumadas para o céu. O incendio, espalhando ao longe a sua sinistra claridade, erguia-se como um tocheiro disforme acceso no meio do arraial e despertava assim do somno profundo os soldados d'Al-Sudan lançados em volta do pavilhão do amir.

Mas já a este tempo o cavalleiro se affastava do logar daquella scena medonha. As palavras—«liberdade e Pelagio!» proferidas por elle, tinham calado como um balsamo de vida no coração d'Hermengarda. O desconhecido, tomando-a nos braços, atravessou ligeiro para o lado do arraial onde estanceiavam [209] os godos. Outro cavalleiro lhe tinha de rédea dous ginetes. Hermengarda, a quem o perigo e a esperança haviam restituido toda a natural energia, não hesitou em acompanhar o seu audaz e mysterioso salvador. Seguindo os caminhos tortuosos e incertos que as tendas do immenso arraial formavam e guiando-se pela lua, que principiava a saír detrás dos outeiros, os tres fugitivos encaminharam-se para o lado do campo além do qual as montanhas, lá ao longe, reflectiam já o luar das cumiadas cubertas de neve.

Entretanto Al-Fehri correra a despertar os negros da guarda do amir, e o cavalleiro ainda ouviu os gritos destes ao contemplarem o incendio, mais prestes em acorda-los que o eunucho. Á entrada da tenda, o vigia que devera despertá-los ao primeiro signal de Abdulaziz havia adormecido de somno mais profundo que o delles. Um punhal enterrado na garganta até o punho lhe sellara para sempre os labios. Os gestos de desesperação d'Al-Fehri fizeram conhecer aos soldados o perigo do amir. Por entre as chammas, ferido e semi-morto, a custo poderam salvá-lo. Pouco a pouco, o tumulto se alongou pelo arraial: os cheiks arabes e os capitães de Juliano corriam para o logar onde brilhava o [210] incendio, e, dentro em pouco, as vozes desentoadas, o tocar das trombetas, o rufar dos tambores, o tropeiar dos cavallos naquella vasta planicie fariam crer a quem olhasse para alli dos montes vizinhos que no arraial se pelejava uma batalha nocturna.

No meio da confusão que produzíra por toda a parte este acontecimento inesperado e cujo motivo e circumstancias inteiramente se ignoravam, ninguem reparou nos dous cavalleiros e na donzella que, atravessando rapidamente por entre as tendas dos arabes e dos godos, se dirigiam para as atalaias do norte. Era, porém, aqui onde os maiores perigos aguardavam os tres fugitivos.

A revolta do campo chegara aos ouvidos dos vigias. Sobresaltados pelo clarão que refulgia do logar do incendio e pelo rumor que soava dessa parte, o grito de alarma correra de boca em boca, de uns para os outros outeiros, que successivamente se illuminavam. No largo gyro que tal bradar fizera, aquella cadeia de sons uniformes fora subitamente quebrada. Lá, na almenara do norte, nenhuma voz respondera ao vozeiar dos esculcas; nenhuma luz de fogueira brilhara de novo. De cada um dos postos vizinhos, uma decania de corredores transfretanos desceu, então, [211] aos valles e, subindo depois por uma e outra encosta, vieram todas topar na coroa do outeiro. Á claridade da lua, cujos raios inclinados roçavam já pela terra, viram reluzir no chão troços d'armas, e, estirados ao pé dellas, estavam os corpos de seus donos involtos nos saios de malha. Rapido e violento devia ter sido o commettimento, numerosos os cavalleiros inimigos; porque nem um dos atalaias podera escapar. Nem um: que todos ahi jaziam! Braço robusto tinham por certo aquelles que assim ousavam penetrar no campo de Abdulaziz: as feridas profundas assignadas nos cadaveres davam disso testemunho. Não havia que duvidar: Pelagio salteiara o arraial. O incendio que reverberava ao longe e o arruído como de um grande combate diziam que o facho da vingança fora arrojado ao meio das tendas do Islam, e que o ferro dos defensores da Hespanha viera, nas trevas da noite, lavar com sangue o logar dos banquetes, tincto ainda de vinho e immundo de prostituição.

Este pensamento passou fugitivo e confuso pelo espirito dos guerreiros, que olhavam como petrificados para a scena de morte que tinham ante si a qual, de um lado, era alumiada pela luz debil da lua nascente, e, do [212] outro, pelo clarão avermelhado e ainda mais frouxo do incendio ao longe. Um correr de cavallos que subiam ligeiro a encosta da banda do arraial lhes divertiu a attenção. Volveram para lá os olhos. Tres vultos a cavallo se dirigiam para alli. Dous, cubertos de armas escuras, ladeiavam o terceiro, cujas roupas alvejavam ao luar. Os corredores transfretanos adiantaram-se para elles. Ao aproximarem-se, viram que o vulto branco era de mulher e que os outros trajavam saios e elmos e traziam achas d'armas. Eram em tudo semelhantes aos guerreiros d'Al-Sudan que compunham a guarda do amir.

Um dos dous cavalleiros affastou-se da donzella e, dirigindo-se aos capitães das decanias, unidas no topo do outeiro, disse-lhes em romano, com voz que simulava profunda colera:

«Os inimigos entraram no campo e accommetteram a propria tenda de Abdulaziz. Os soldados do conde de Septum lhes deram passagem; porque a elles estava confiada a guarda do campo. Em qual das atalaias estão os traidores?»

«Os valentes da Transfretana nunca mereceram esse nome—replicou um dos decanos ou capitães dos esculcas.—Foi aqui onde [213] deram o passo aos inimigos; mas o caminho destes foi por cima dos seus cadaveres. Julgae-os.»

E as duas decanias affastaram-se para os lados. Vinte cadaveres estavam lançados por terra.

«Sobre elles não cahiu o opprobrio na sua ultima hora:—disse o guerreiro depois de contemplar um momento aquelle espectaculo.—Abdulaziz ordena que se guardem estreitamente as saídas do campo. Não tardam os cavalleiros zenetas que vem ajunctar-se nas atalaias comvosco, a fim de que nenhum infiel possa escapar, emquanto nós vamos conduzir para logar seguro, fóra do arraial revolto, a escrava querida do amir. Vinde!—proseguiu elle, voltando-se para o companheiro.

Atravessando por entre os soldados tingitanos, a donzella e os seus libertadores começaram a descer apressadamente a encosta.

Já os tres fugitivos íam a alguma distancia, quando, como tomado de uma idéa subita, um dos esculcas exclamou:

«Aquelle homem é godo!—Nenhum arabe fala assim a lingua romana: muito menos os broncos guerreiros d'Al-Sudan. Por minha fé, que são inimigos!»

[214] Os acontecimentos inesperados dessa noite, a incerteza em que se achavam os esculcas sobre o que succedia no arraial, a rapidez com que se passara esta scena e, sobretudo, a audacia e o tom imperativo com que o desconhecido falara não haviam dado logar á reflexão e ás suspeitas. Mas as palavras do soldado foram para todos um raio de luz:

«Tens razão, buccellario:—atalhou o capitão da decania.—Fazei-os parar.»

Os tres, que já íam a meia encosta, ouviram muitas vozes clamar:—esperae!

«Somos perseguidos!—disse em voz baixa aquelle que ficara juncto da donzella emquanto o outro falava com os vigias.

«Está salva!—respondeu o companheiro, que parecia ter concentrado todos os seus cuidados n'um pensamento unico, a fuga d'Hermengarda.

Duas frechas lhes sibillaram então por cima das cabeças.

«Covadonga e Pelagio!—gritou o que proferira as ultimas palavras. Eram chegados á raiz do monte, juncto ao qual uma planicie inculta e cuberta d'urzes se estendia até ir topar com os bosques que povoavam os primeiros cabeços das serranias septemtrionaes.

A esta voz, lá na orla da floresta, ao cabo [215] do sarçal, surgiram de repente uns reflexos metalicos, que se agitavam trémulos, semelhantes á phosphorencia de um marnel por noite sem lua. Depois, o grito de—Covadonga e Pelagio—foi repetido daquelle lado da gandra, como respondendo ao que soltara o cavalleiro.

«São os nossos valentes irmãos—disse ao companheiro o que falara com os decanos das tiuphadias transfretanas.—São nossos irmãos, que nos esperam. Tu, Sancion, guiarás ao meio delles a nobre irman do duque de Cantabria. Entretanto eu reterei aqui os miseraveis renegados, que já descem do outeiro a perseguir-nos; retê-los-hei emquanto alcançaes a entrada do bosque e vos embrenhaes na serrania, seguindo ao norte. A agrura das montanhas e a profundeza dos valles das Asturias demorarão os inimigos, quando eu haja de perecer e não podér embargar-lhes os passos. Ide-vos.»

«Não perecerás sem mim, cavalleiro negro:—replicou o fero Sancion.—Cumprirei o que ordenas, porque jurei obedecer-te cegamente emquanto não salvassemos a irman de Pelagio. Mas, apenas alcançar a orla da floresta onde mandaste esperar os nossos dez companheiros, voltarei com todos os que [216] me quizerem seguir. Para guiar a filha de Favila bastam dous guerreiros: o resto não bastará, talvez, a reter durante o tempo necessario para a fuga a turba dos infiéis que se approxima.»

E, sem esperar a resposta do cavalleiro negro, Sancion adiantou-se, dizendo á donzella, que apenas podera perceber algumas palavras truncadas da conversação dos dous:

«Partamos!»

E a galope, acompanhado d'Hermengarda, brevemente se alongou pela vereda torcida, que se distinguia no meio das moutas, como beta alvacenta estampada no tapete escuro das sarças.

A attenção do cavalleiro negro, que os seguira com os olhos, foi, porém, distrahida para o outro lado pelo tropeiar, já pouco distante, dos corredores transfretanos, que a toda a brida se acercavam delle. Era chegada a occasião de mostrar o extremo do seu esforço.



XV

AO LUAR



Das brenhas através affugentando-os,
C'o a rapida carreira á ponte impelle-os.

Officio Mosarabe—Hymno de S. Torquato.


Os soccorros dados immediatamente a Abdulaziz tinham-lhe restituido o sentimento da vida. O clarão da sua tenda, que ainda ardia a poucos passos do logar para onde o haviam transportado, foi a primeira cousa que lhe feriu a vista ao descerrar os olhos do lethargo em que estivera submerso. Esse [218] facho desmesurado, cujo fóco vermelho lhe apparecia cuberto de vasta cupula de fumo negro, o crepitar do incendio, o rumor e alarido do arraial e a inquietação que se lia nos gestos dos que o rodeiavam retraçaram-lhe subitamente no espirito a scena que se passara, pouco antes, naquelle pavilhão incendiado. Era um quadro complexo e terrivel; e o primeiro signal de vida que o amir deu foi um grito d'horror e desesperação. Alçando violentamente o corpo, ficou assentado sobre o almatrah em que estava deitado. Com o rosto livido e tincto do sangue que lhe corria da fronte e o olhar espantado e feroz, hesitar-se-hia ao vê-lo, se esse vulto era o de um homem vivo, se o de um morto que, afastando o sudario, se fosse a erguer da tumba para revelar algum dos temerosos mysterios que encerra a apparente quietação do sepulchro. Parecia que o aspecto do amir convertera em estatuas todos os circumstantes: a immobilidade era completa, e o silencio profundo.

Mas uma e outra cousa duraram apenas rapido instante. Com a voz rouca e affogada, o arabe rugia:

«Segui-o! segui o infiel!... As suas armas são negras e semelhantes ás dos guerreiros [219] d'Al-Sudan... A melhor cidade do Gharb e a mais bella das minhas escravas a quem m'o trouxer vivo aqui. Todos!... Ide, trazei-m'o vivo! Prestes, cheiks, walis, kaiyds, cavalleiros do propheta! Prestes! correi após o meu assassino!»

As palavras de Abdulaziz revelavam o delirio da sua alma; cheiks, walis, e kaiyds olharam tristemente uns para os outros e não fizeram um unico movimento.

«Que! Não me obedeceis? Não obedeceis ao filho de Musa—exclamou o amir—porque a sua voz não soa no meio das trombetas e tambores; porque elle não cinge a espada, nem cavalga o seu corcel de batalha? Sem mim, atterram-vos as solidões das montanhas? Cheiks do Sahará e de Barca, walis d'Andalús, kaiyds e almocadens do exercito dos crentes... sois covardes e desleaes. Quando corre este sangue, vós não sabeis vingá-lo!»

«Não somos desleaes nem covardes, Abdulaziz:—interrompeu o mancebo Abdallah, o unico dos chefes arabes que ousava replicar ao amir nos seus violentos accessos de furor.—Mas como queres que te obedeçamos, se não sabemos de quem te havemos de vingar? De um individuo ou de milhares delles; dos [220] adoradores de Deus ou dos infiéis nazarenos; de nossos irmãos ou de nossos inimigos, não nos importa! Terás a vingança que pedes, inteira quanto mãos d'homens a podem dar. A torrente dos teus cavalleiros espera, apenas, que profiras um nome e apontes um logar, para correr destruidora e irresistivel. Não deves antes d'isso condemnar-nos.»

«Quereis um nome e um logar?—interrompeu o amir.—Ainda, pois, não os adivinhastes? Pelagio e as montanhas do norte. Lá, lá!... Era elle ou um demonio o que me feriu... Porque?... Quando?... Oh, agora me lembra. Ía possuí-la, e roubaram-m'a! Por alto preço pagarão os nazarenos d'Al-Djuf tanta audacia. A cavallo os almogaures do deserto... Persegui-o até o encontrardes. Mas vivo... quero-o vivo em minhas mãos! Ai daquelle que o matar!»

Alguns dos cheiks íam já a saír da tenda para executar as ordens do amir. Um brado subito deste os fez parar.

«Não!... Não partireis sem mim! Quero acompanhar-vos; hei-de acompanhar-vos pelas brenhas e desvios; quero assistir á carnificina desses malaventurados que ainda resistem aos decretos de Deus. É preciso que em breve estejam nas minhas mãos Pelagio [221] e sua irman. Ambos!... Que me tragam ambos!»

D'ahi a pouco, umas andas forradas de telas preciosas recebiam Abdulaziz, conduzido para alli sobre o mesmo almatrah ensanguentado em que os medicos judeus lhe haviam ligado as feridas. Rodeiavam as andas os cavalleiros negros de Al-Sudan. Duzentos bereberes, filhos das serranias do Atlas, estavam, tambem, em volta dellas: estes deviam transportá-las a gyros pelos alcantis das Asturias. As renques de tendas alvejantes, ponteagudas, formando uma como vasta cidade, que, ao subir da lua, davam ao arraial o aspecto de um cemiterio do oriente, sem os cyprestes funebres e esguios; toda essa multidão de pavilhões brancos, semelhantes a um mar de pyramides, havia desapparecido, e, apenas, o luar, batendo nos ferros das lanças dos esquadrões cerrados e na geada que cahia sobre os turbantes dos cavalleiros, refrangia trémulo um clarão prateiado.

E o sussurro que se ouvia entre tantos milhares de homens era, apenas, o murmurio das respirações oppressas pelo frio nocturno e o resfolegar dos ginetes, aspirando o nevoeiro humido que se alevantava da terra.

Mas lá, na vanguarda, para o lado das [222] atalaias do norte, d'onde se descortinavam os topos recortados das montanhas sobre o chão claro do céu, como fileira de gigantes petrificados durante uma dança de embriaguez, tão phantasticos eram os seus contornos, ouvia-se o ruído alto e indistincto do cruzar de muitas vozes, do tropeiar de muitos cavallos: viam-se lampejar as armas nos visos dos dous ultimos outeiros que por aquella parte rodeiavam o campo, e agitarem-se ondas de vultos humanos e sumirem-se, onda após onda, como se os devorasse voragem aberta de subito debaixo dos seus pés: eram os cavalleiros que transpunham a eminencia. O exercito, detrás daquelles dous outeiros, que formavam como um ponto unico, vinha successivamente engrossando até o logar em que estava Abdulaziz. Parecia um desmesurado triangulo de ferro, a ponto de ir bater na muralha da serrania, que, vestida com a sua armadura de selvas, esperava o embate daquelle disforme vaivem, que já começava a oscillar ante ella.

Uma scena horrenda se passava, entretanto, além das atalaias, no extenso sarçal que se estendia até o sopé das primeiras montanhas. Os soldados transfretanos tinham-se lançado pela encosta abaixo atrás dos fugitivos. [223] Ao chegarem á planicie, um dos tres desconhecidos estava diante delles, esperando-os quedo no meio da estreita trilha aberta por entre as urzes. A acha d'armas goda e a cadeia que lh'a prendia ao braço reluziam unicamente naquelle vulto, cujo saio e cavallo negros e cujo silencio profundo faziam lembrar um desses espectros errantes alta noite pelos logares desertos.

Os outros dous vultos galopavam a alguma distancia, encaminhando-se para a orla do bosque, onde continuavam a reverberar reflexos de armas polidas.

«Quem és tu?—disse um dos capitães das decanias, dirigindo o cavallo para o vulto negro.—Quem és tu, que ousaste enganar os atalaias do campo d'Abdulaziz, os guerreiros do conde de Septum?»

«Sou um homem que aínda não renegou nem da cruz, nem da Hespanha; um homem que não acceitou o ouro dos barbaros para ser o assassino covarde de seus irmãos.»

«Miseravel, que ajunctas ao engano a insolencia!—rugiu o decano, alçando a espada.—As derradeiras palavras de orgulho e rebeldia acabam de sair-te dos labios.»

Ultímas palavras foram, porém, as do decano: a borda gyrou sibilando no ar, e o [224] guerreiro transfretano cahiu para o lado morto, como se o fulminara o raio.

Com um grito de horror e de colera, os que o seguiam precipitaram-se para o desconhecido.

Rodeiado de quasi vinte homens, o cavaleiro negro repetia apenas uma parte das gentilezas que practicara na fatal jornada do Chryssus. A cada golpe da borda respondia um gemido de moribundo; depois, uma injuria ameaçadora dos que ficavam; depois, um rir de desprezo do cavalleiro, e, d'ahi a pouco, um novo gemido d'alma que se despedia da terra. O tropel dos pelejadores rareiava de instante a instante.

Mas os que expiraram não ficarão sem vingança. Os cabos das decanias, antes de seguirem os fugitivos, tinham enviado um buccellario que relatasse a Juliano o que succedera na atalaia e como elles íam no alcance daquelles a quem irreflectidamente haviam dado passagem. O buccellario fora encontrar o conde juncto de Abdulaziz. A sua narração e o que se passara na tenda do amir eram dous factos que mutuamente se explicavam. Os esquadrões mais bem encavalgados foram despedidos logo em seguimento dos fugitivos. Na idéa de que só Pelagio podia [225] ter audacia bastante para vir accommetter o filho de Musa na sua propria tenda, os capitães do exercito mosselemano não duvidaram um momento de que fosse elle o desconhecido. Colhendo-o ás mãos antes de se unir aos seus montanhezes, o exterminio destes sería facil empreza. Assim, os melhores almogaures deviam perseguil-o sem descanço nem treguas até o captivarem. Sendo assás numerosos para resistirem a qualquer recontro inesperado dos godos das Asturias, bastaria que o grosso do exercito os seguisse de perto para fazer que a victoria fosse indubitavel e completa.

Uns após outros, os esquadrões dos almogaures desciam já dos outeiros: o ruído do combate e o brilho das armas serviam-lhes de guia. Pareciam rolar pela encosta e, cegos na carreira, atufavam-se no mato, que estalava debaixo dos leves pés dos ginetes arabes. O cavalleiro viu-os e pensou. Esperar a pé firme milhares d'homens não era esforço, era loucura. Além disso, os seus companheiros deviam ter-se já embrenhado nas selvas com a irman de Pelagio. Até ahi não fizera mais do que defender-se dos soldados transfretanos que o cercavam; mudando, porém, da defensão para o commettimento, [226] arrojou-se contra os seus adversarios, e em poucos instantes os que não cahiram ante a acha d'armas foram constrangidos a fugir, buscando amparar-se no meio dos esquadrões que se approximavam.

Então o cavalleiro deu volta. A senda alvacenta que se estirava por entre o mato até a floresta começou a embeber-se-lhe debaixo dos pés do ginete. Á vista, assemelhava-se a um rolo de fita, estendido e retesado por momentos, que, solto, busca, volvendo-se de novo, a sua curvatura anterior. A rapidez da corrida era quem o podia salvar: a dianteira dos almogaures arabes hesitara vendo recuar tantos homens diante de um homem só; porém, ao retroceder do cavalleiro, lançavam-se despeiadamente após elle para o alcançarem antes que chegasse ao bosque.

Mas a distancia que os separava era grande, e os arabes, lançando-se ás cégas por entre as sarças e enredando-se nellas, retardavam-se a si proprios e augmentavam essa distancia. A sua alarida, que ía retumbar ao longe nas anfractuosidades da serra, ajudava o esporeiar do guerreiro com o espanto que produzia no agil e robusto ginete.

Já bem perto do extremo da selva, o cavalleiro pôde distinguir uns vultos que pareciam [227] espera-lo. Ao seu bradar—Covadonga e Pelagio!—respondeu o mesmo brado, proferido por uma voz retumbante. Conheceu-a: era a de Sancion. O fero gardingo cumprira a sua promessa. A despedida dos christãos do campo de Abdulaziz devia ficar escripta com letras de sangue na historia dos triumphos do Islam.

Chegando á orla do bosque, as primeiras palavras que o cavalleiro negro soltou foram dirigidas a Sancion:

«Porque voltastes sem vo-lo eu ordenar, vós os que tinheis jurado obedecer-me em tudo? Onde está a irman de Pelagio?»

«Segue os desvios da serra: respondeu Sancion. Astrimiro e Gudesteu a acompanham: Hermengarda está salva. Só até este ponto nos ligava o juramento que démos. Foste nosso capitão: agora cessaste de o ser. Homens livres n'uma terra serva, queremos combater onde tu combates, morrer se tu morreres. Ao menos—accrescentou em tom amargo—não poderás dizer de novo que foste o ultimo no pelejar em quanto os valentes fugiam.»

«Louco!—exclamou o cavalleiro negro.—Juncto do Chryssus a Hespanha pedia aos seus filhos que morressem sem recuar: aqui [228] é tambem a patria que exige dos seus ultimos defensores que não se votem a morte inutil. Fujamos! vos digo eu: porque a fuga não póde deshonrar aquelles que mil vezes tem provado quanto desprezam a vida. Vede... Não são apenas alguns corredores que nos perseguem: são esquadrões e esquadrões d'agarenos que transpõem após nós a assomada.

Mas elles não o escutavam: Sancion, seguido dos seus nove companheiros, investia com os arabes, que tinham entretanto chegado.

Semelhante á segure, entrando no amago do carvalho, sob os golpes do robusto lenhador, aquelle punhado de homens, a cuja frente se achava Sancion, penetrou no massiço da cavallaria arabe. O ferir das espadas nos saios e elmos retiniu n'um som estridente, e a alarida dos sarracenos foi cortada por momentaneo silencio: depois, ouviram-se alguns gemidos abafados, a que succederam novos gritos de ameaça e furor e o bater e o reluzir trémulo do ferro, cruzando-se com o ferro, e o tropeiar confuso dos ginetes em recontro bem travado. Os arabes haviam parado diante de tanta ousadia. Mas, logo que o primeiro espanto passou, os dez guerreiros christãos, accommettidos por todos os [229] lados, começaram a recuar. O cavalleiro negro, que ficara quedo, disse-lhes então:

«Quizestes tentar o Senhor com uma façanha inutil, e o Senhor vos abandona. Salvae as vidas! Exige-o o desaggravo da cruz e a liberdade da Hespanha!»

E pondo-se ao lado de Sancion fez gyrar a sua borda destruidora no meio dos infiéis. Naquelle impeto os inimigos tambem recuaram, e o cavalleiro, aproveitando este rapido instante, proseguiu:

«Aos que se envergonham de poupar a vida, para a perder com gloria quando o dia do sacrificio chegar, darei eu o exemplo! Podeis dizer aos nossos irmãos que o primeiro em fugir foi aquelle que nunca fugiu; foi o cavalleiro negro!

E, voltando as costas aos agarenos, internou-se na espessura.

Habituados a considerar o desconhecido como um ente mysterioso e extraordinario, os guerreiros de Sancion deram volta, e o orgulhoso gardingo viu-se obrigado a imitá-los.

Ei-los vão! Endireitando a carreira para o lado do norte, dirigem-se após Hermengarda, emquanto os almogaures arabes, guiados pelo ruído dos ginetes, os cerram de [230] perto. Os esquadrões, penetrando na selva, assemelhavam-se a uma serpe disforme, que se desenrolava, colleiando e estirando-se por entre o arvoredo, e que de momento a momento ameaçava tragar os fugitivos, os quaes mal podiam conservar uma pequena distancia entre si e os seus implacaveis perseguidores.

A lua passava então nas alturas do céu. O ar, postoque frio, estava manso e diaphano. Era uma formosa noite de inverno; mais formosa que as socegadas noites do estio. As arvores, na maior parte desfolhadas, deixavam o luar, por entre os ramos despidos e tortuosos, desenhar no chão figuras extranhas, que vacillavam indecisas: os robles nodosos e calvos, misturados com os rochedos pyramidaes, que se alevantavam irregulares e phantasticos nas arestas das encostas ingremes, nas lombadas penhascosas das serras, pareciam fileiras de demonios, caminhando de roldão a despenharem-se nos valles ou dançando nos visos das alturas. Os cavalleiros, correndo á redea solta, sentiam coar-lhes nas veias involuntario terror, augmentado pelo estrupído soturno da cavallaria sarracena, que soava e ía morrer a grande distancia n'um quasi imperceptivel sussurro.

A furia da carreira crescia ao passo que [231] os fugitivos se embrenhavam na maior espessura da floresta. Durante algum tempo, elles tinham podido descortinar os pincaros das montanhas e, lá muito ao longe, os mais altos cabeços do Vinnio, que reflectiam o luar no seu manto prateiado de neve.

Mas a selva já começa a rareiar, e os ginetes a resfolegarem com mais violencia: d'instante a instante os cavalleiros christãos, espreitando as estrellas do horisonte, que lhes servem de guias, vêem fugir aquella teia enredada, que as franças das arvores lhes affiguram como lançada sobre o chão claro do firmamento. Menos frequentes, as bastas e perennes folhagens dos medronheiros passam como globos negros, que, elevando-se a pouca altura da terra, voam despedidos, por um e por outro lado, para trás delles. É que os onze guerreiros principiam a galgar as alturas que são como a base irregular das montanhas, como o pedestal commum d'aquelles obeliscos da creação. O galope dos corceis dá um som aspero de ferro batendo em pedra, e o alvejar desta revela que as torrentes passaram por lá e arrastaram a relva e os musgos que a humidade fizera nascer no outono sobre o pó, accumulado nos barrocaes pelas ventanias do estio. Naquelle solo pedregoso [232] e revolto torna-se mais difficultosa a fuga, e o impeto da carreira affrouxa visivelmente. Os arabes começam a saír d'entre os arvoredos e a approximar-se dos christãos. Emquanto estes tenteiam a medo o chão malgradado, que lhes rola debaixo dos pés dos cavallos, porque para elles o tropeçar, o vacillar é a morte, os seus numerosos perseguidores, attentos só a alcançá-los, galgam por cima do desgraçado almogaure que, derribado pelos proprios companheiros, expira sem combate, sem gloria e sem que a perseguição dos fugitivos deixe por isso de ser, como até ahi, incessante, implacavel, vertiginosa.

Depois de subirem a encosta, o cavalleiro negro e os que o seguiam viram alongar-se diante delles uma chapada plana, em cujo topo a serra se alteiava de novo, com os seus mil accidentes de cordilheiras cortadas, de algares profundos, de gargantas selvosas, ao lado das quaes os picos agudos se atiravam para o ar ou pendiam sobre os abysmos e torrentes. A natureza, mais rude naquellas paragens, tinha um aspecto soturno, vista assim, ao perto e á luz da lua: era como um oceano tempestuoso, onde todas as gradações da morte-cor se confundiam e misturavam, [233] desde a brancura desbotada e pallida do rochedo até a pretidão fechada dos pinheiros retinctos nas sombras da noite.

E por aquella dilatada chan os onze esforçados largam redeas aos ginetes e ensanguentam-lhes o ventre com o esporeiar incessante: o ruído do proprio correr já não o sentem; confunde-se no estrépito do esquadrão d'arabes que de mais perto os segue. A vingança vai-lhes no alcance; e, se algum volve atrás os olhos, aquelle turbilhão ennovelado que rola após elles, negro, rapido, tortuoso, composto de centenares de vultos, cujos olhos affogueiados reluzem nas trevas, cujos dentes alvejam como os do javali irritado, assemelha-se-lhes a uma legião de demonios, e a um rir infernal o tinir das espadas, o resfolegar dos cavallos, e o murmurar dos cavalleiros, que parece entoarem-lhes já o hymno da morte.

Na extensa chapada, tanto a fuga como a perseguição eram um phrenesi, um delirio. Christãos e mosselemanos desappareciam por entre as sarças cubertas de orvalho, e o ar, dividido violentamente, zumbia-lhes em roda, como um gemido contínuo. Christãos e mosselemanos punham o extremo da diligencia nesta ultima tentativa. Além da planicie, [234] os alcantis e as selvas gigantes eram a esperança de uns, o desalento d'outros. Alli, os precipicios cortavam subitamente os caminhos abertos pelas feras nas balsas, e ao cabo de valle fundo os rochedos fechavam imprevistamente a saída: aqui, a senda tortuosa ía morrer na torrente; lá, a torrente em catadupa. Os godos, affeitos áquelles desvios alpestres, sabiam-no; os arabes adivinhavam-no ao descortinarem o espectaculo que tinham ante si, essa especie de cahos nascido das grandes convulsões do globo na sua vida de muitos seculos, que a baça claridade da noite tornava ainda mais phantastico.

Emfim, os christãos atravessam a campina e começam a embrenhar-se nas solidões das mais agras montanhas. Os agarenos redobram então de energia; mas debalde. Poucos passos medeiam entre uns e outros, e os fugitivos sentem já o resfolegar dos cavallos e o respirar alto dos inimigos; mas esse espaço não se encurta. Ahi, parece estar de permeio o braço da providencia, que quer salvar os defensores da cruz. Furiosos, esquecidos da vontade de Abdulaziz, que exige para pasto dos tormentos aquellas poucas vidas, os guerreiros do amir despedem de longe as lanças, que vão pela maior parte cravar-se [235] nos troncos dos robles. Duas, porém, silvam por entre os fugitivos; ao mesmo tempo dous ginetes param, vacillam e cahem. São os de Viterico e Liuba, os mais moços dos onze guerreiros. Sem transição, sem esperança, o espectro da morte se lhes ergue diante dos olhos fatal, incontrastavel.—Oh minha mãe, vem receber teu filho!—foram as unicas palavras que proferiu Viterico. Era ás recordações maternas e á saudade que esse ultimo grito de um moribundo cheio de vida se dirigia. Liuba tambem murmurou um nome; mas só elle e Deus o ouviram. Era o da sua amante, violada e morta na tomada d'Emerita. No transe final, aquella alma pura não revelara aos homens o mysterio do amor, da desesperação e do sepulchro. Orpham no mundo, separado daquella em quem empregara o affecto de um coração virgem e que tão tristemente perdera, Liuba, solitario sobre as ruinas da Hespanha e sobre as ruinas da propria existencia, era o primeiro em se arrojar aos perigos; e nessa noite, emfim, chegava para o desgraçado a hora appetecida do repousar eterno.

Debalde os almogaures dianteiros tentaram suster a corrida, para colher ás mãos os dous godos derribados. Impellidos pelos [236] que os seguiam e arrastados pela propria furia, galgaram por cima delles; e quando, aos gritos dos almocadens, ao soffreiar dos cavallos, ao baralharem-se os esquadrões em mó apinhada e ao abrirem aos lados, poderam erguê-los do chão onde jaziam, as suas almas tinham subido ao céu, e os seus cadaveres, esmagados, sanguinolentos, desconjunctados, eram duas cousas informes, em que apenas se divisavam vestigios de vultos humanos.

Logo que Viterico e Liuba cahiram, um movimento incerto de hesitação affrouxara um pouco a fuga dos seus companheiros; mas a voz de—ávante—proferida pelo cavalleiro negro, lhes troou nos ouvidos, e essa voz foi seguida de algumas palavras travadas de lagrymas, de que davam visivel signal o trémulo e cortado com que eram proferidas:

«As almas de dous martyres sobem neste momento ao céu: elles orarão ao Senhor para que salve a liberdade e a vida de seus irmãos, que só querem uma e outra para combaterem pelos altares do Christo.»

Dictas estas palavras, o cavalleiro negro cravou as esporas no ventre do ginete e repetiu:—ávante!—

E os outros godos seguiram-no sem hesitar [237] mais: a carreira tinha-se convertido n'uma especie de furia louca e desesperada.

Os almogaures, desordenados já, retidos pelas diligencias que faziam para alçar os dous cadaveres, e embaraçando-se uns aos outros, viram desapparecer os godos n'uma garganta estreita, entre rochedos e balsas, emquanto os almocadens lhes bradavam tambem—ávante!—

E os primeiros que poderam obedecer-lhes atiraram-se por aquella especie de fojo cavado pelas torrentes de muitos seculos; mas as sinuosidades da penedia encobriam-lhes os godos, e, obrigados a parar frequentemente para conhecerem a que parte elles se encaminhavam, cada vez sentiam mais remoto e tenue o tropel dos ginetes.

Dir-se-hia que as palavras do cavalleiro negro haviam sido propheticas: o sangue dos dous martyres fora, talvez, o preço da redempção dos fugitivos.



XVI

O CASTRO ROMANO



A desconforme profundeza do alto precipicio ahi está patente: elle gera terror no homem que o contempla de cima.

Valerio BergidenseExplanações.


A hora de amanhecer approximava-se: o crepusculo matutino alumiava frouxamente as margens de rio malassombrado, que corria turvo e caudal com as correntes do inverno. Apertado entre ribas fragosas e escarpadas, sentia-se mugir ao longe com incessante ruído. A espaços, destorcendo-se em [239] milhões de fios, despenhava-se das catadupas em fundos pegos, onde refervia, escumava e, golfando em olheirões, atirava-se, massiço e atropelando-se a si mesmo, pelo seu leito de rochas, até de novo tombar e despedaçar-se no proximo despenhadeiro. Era o Sallia, que, de quéda em quéda, rompia d'entre as montanhas e se encaminhava para o mar cantabrico. Perto ainda das suas fontes, o estio via-o passar pobre e limpido, murmurando á sombra dos choupos e dos carvalhos, ora por meio das balsas de carrascos e silvados, que se debruçavam, aqui e acolá, sobre a sua corrente, ora por entre penedias calvas ou corregos estereis, onde em vão tentava, estrepitando, recordar-se do seu bramido do inverno. Mas, quando as aguas do céu começavam nos fins do outono a fustigar as faces pallidas dos cabeços, a ossada núa das serras, e a unir-se em torrentes pelas gargantas e valles, ou quando o sol vivo e o ar tepido d'um dia formoso derretiam as orlas da neve que pousava eterna nos picos inaccessiveis das montanhas mais elevadas, o Sallia precipitava-se como uma besta-fera raivosa e, impaciente na sua soberba, arrancava os penedos, alluía as raizes das arvores seculares, carreiava as terras e rebramia com [240] som medonho, até chegar ás planicies, onde o solo o não comprimia e o deixava espraiar-se pelos paúes e juncaes, correndo ao mar, onde, emfim, repousava, como um homem completamente ebrio que adormece, depois do bracejar e lidar da embriaguez.

Na margem direita do rio, que então passava grosso de cabedaes por um dos valles que retalham as montanhas das Asturias no seu pendor occidental, viam-se ainda no principio do oitavo seculo as ruinas de antigo castro ou arraial romano. Jaziam estas em uma especie de promontorio de rochas pendurado sobre a veia d'agua e talhado quasi a pique por todos os lados. Na borda de espaçoso lagedo, que formava como uma eira irregular, avultavam fragmentos de grossos pannos de vallos de pedra, e no alto de uma ladeira ingreme que conduzia á entrada daquelle circuito achavam-se os vestigios de uma porta de campo, provavelmente a pretoria: a decumana, fronteira a ella, fazia, fóra do vallo, um limitado terreirinho, em cujo topo, e a bastante profundidade passava o rio negro e veloz com mugido contínuo. Ainda na borda do rochedo aprumado sobre a agua se enxergavam alguns orificios profundos, que mostravam terem servido para embeber as [241] traves de ponte lançada para a outra margem, tambem elevada e penhascosa. A situação daquellas ruinas, a fórma quasi circular dos vallos e a sua disposição interior evidentemente indicavam um desses hibernáculos ou arraiaes do inverno levantados pelas legiões de Roma nas suas tentativas repetidas e quasi sempre inuteis para subjugar os celtiberos das cordilheiras da Cantabria e das Asturias.

A ponte romana, porém, se outr'ora ahi existira, haviam-na consumido as injurias das estações. Em logar della, os habitantes daquelles desvios tinham tombado através do Sallia um roble gigante, um dos filhos primogenitos da terra que nos seus dias seculares fora enredando as raizes nos seios da pedra, até irem beber no leito do rio. A arvore monstruosa, derribada por cima da corrente, caira sobre o alcantil fronteiro e vivia de uma vegetação moribunda, que mal podia conservar através do cepo, arrancado quasi inteiramente do sólo. Calva e musgosa, apenas alguma vergontea, que lhe rompia da enrugada epiderme na primavera para morrer no estio, dava signal de que o rei dos bosques ainda não era inteiramente um cadaver. Mas essa pouca vida bastava para que [242] a obra rude dos barbaros montanheses durasse por mais annos que a edificação regular e solida dos antigos metatores ou engenheiros das legiões romanas. Para aquelles, todavia, que não estivessem affeitos a perseguir a zebra pelas encostas escarpadas, a galgar os precipicios após a cabra montez e a combater com os ursos e javalís nas bordas dos fojos, sem se lhes turbar a vista; para esses taes a ponte vegetal dos asturios sería um sitio arriscado. No meio do passo estreito, irregular e cylindrico, sentindo e vendo mugir e desapparecer debaixo dos pés a corrente inchada e turva, quasi impossivel lhes fora não vacillar: mas ao vacillar seguir-se-hia o despenhar-se, e ao despenhar-se a morte. Á altura da quéda e ao impeto das aguas ajunctava-se o agudo dos rochedos, entre os quaes o rio, escumando, se estorcia e despedaçava.

Ao partir de Covadonga e ao dirigir-se para o campo de Abdulaziz, os cavalleiros christãos tinham rodeiado o Vinnio, seguindo mais ao oriente; mas, habituados nas suas contínuas correrias a discorrerem pelos atalhos e carrís das montanhas, de antemão previam que, no caso de levarem a cabo a temeraria empreza que commettiam, a agrura [243] da serra sería a sua melhor defesa contra a perseguição dos arabes. Assim delinearam o caminho que deviam seguir na fuga, vindo atravessar o Sallia, já perto do seu escondrijo, naquella especie de passo fortificado, conhecido ainda entre os godos pelo nome de Castrum Paganorum ou arraial dos pagãos.

Foi justamente ao tingir-se o céu da faixa avermelhada que precede o surgir do sol que dous cavalleiros galgaram ao galope a ladeira que dava accesso para as ruinas do castro romano. No meio delles, cavalgando tambem um alazão agil e ao mesmo tempo robusto, uma dama vestida de branco parecia mal poder já manter-se na sella, segurando-se umas vezes ao arção, outras ás crinas fluctuantes do valente animal. Eram Hermengarda e os seus dous guardadores que chegavam, finalmente, ás margens do Sallia. Pouco devia tardar o instante em que a formosa irman de Pelagio achasse, depois de tantos perigos e terrores, abrigo e paz nos rudes paços de seu esforçado irmão.

Mas a corrida violenta e incessante por sendas montuosas e asperas tinha exhaurido as forças da filha de Favila, como os successos por que passara desde que partíra de Tárraco lhe tinham quasi anniquilado as do [244] espirito. Ao chegar ao meio daquelles restos do acampamento romano sentia-se desfallecer de cansaço, ao passo que a febre e a sêde lhe devoravam as entranhas. Os dous cavalleiros, olhando para ella, viram-lhe, com a luz da alvorada, as faces tinctas de pallidez mortal. Ás vezes, durante o caminho e, sobretudo, nos sitios mais altos, quando as lufadas do norte acalmavam momentaneamente, percebiam ao longe um debil ruído, soturno e contínuo, que se assemelhava ao tropeiar de cavallos; mas havia horas em que apenas sentiam o estrepito do galopar dos proprios ginetes, bem que o vento houvesse cahido de todo na antemanhan. Inquietos, tambem, pela sorte dos companheiros que tinham deixado atraz de si, resolveram parar no meio daquellas ruinas. Salteiados de improviso pelos arabes, facil lhes sería transpôr a ponte natural que tinham diante, e as poucas raizes que prendiam o moribundo carvalho á margem opposta cederiam bem depressa aos gumes afiados dos seus frankisks. Então o tronco da velha arvore se despenharia no abysmo, e o leito profundo e escarpado do Sallia ficaria como uma barreira entre elles e os inimigos.

Descavalgando, os dous guerreiros tomaram [245] nos braços a irman de Pelagio e foram recliná-la sobre um monticulo cuberto de relva e musgos, que, pela sua situação no logar onde, provavelmente, ficava a divisão entre o pretorio e a parte inferior do campo, dava indicios de ser o assento das aras dos deuses, que os romanos usavam collocar no meio dos arraiaes. Regelada exteriormente ao passo que o ardor febril lhe queimava o sangue, Hermengarda, apenas tocou em terra, só pôde pronunciar a palavra «sêde», cahindo amortecida sobre a relva orvalhada. O unico signal que nella revelava a vida era o tremor convulso que violentamente a agitava.

Emquanto Astrimiro subia ao vallo, de cujo topo se descortinava melhor, postoque a breve distancia, o caminho que haviam seguido, Gudesteu trabalhava em ajunctar alguns troncos de arvores e as folhas seccas amontoadas pelos ventos do estio que as chuvas outonaes ainda não tinham arrastado. Brevemente, o ar tepido de uma fogueira fez volver a si a donzella: o cavalleiro offereceu-lhe um pequeno frasco de sicera que desprendera do arção e que lhe restituiu algum vigor aos membros entorpecidos. Depois, Gudesteu chamou o seu companheiro e disse-lhe:

[246] «Os ginetes não podem passar além. Ide e lançae-os para o lado oriental da montanha: elles buscarão o trilho acima das fontes do Sallia e descerão a Covadonga.»

E Astrimiro, guiando os tres ginetes pela ladeira abaixo, affagou-os um a um e, segurando-lhe as rédeas á ephippia, deu um silvo com soído particular. Os ginetes fitaram as orelhas, aspiraram ruidosamente o ar e partiram ao galope, por meio da selva, para o lado que Gudesteu indicara.

Este, apenas os viu desapparecer, dirigiu-se para Hermengarda.

«É necessario, senhora,—disse elle—uma derradeira prova d'esforço: é necessario partir já. Os nossos ginetes, ensinados a voltarem sós ao campo christão do deserto quando os ardís ou os perigos da guerra nos obrigam a abandoná-los, não causariam nem extranheza nem receio ao apparecerem ahi sem seus donos, se não fossem as circumstancias extraordinarias da nossa correria. Mas, quem poderá dizer ao duque de Cantabria qual sorte nos coube na temeraria empreza que commettemos? Quem, senão vós mesma restituida aos seus braços, lhe dará a certeza de que estaes salva das mãos dos infiéis? Para nós, habituados a descer precipicios e a salvar [247] torrentes, aquella ponte estreita e selvatica é facil de transpôr, galgando-a rapidamente e sem volver os olhos para o abysmo. Invocae toda a energia da vossa alma, todas as vossas forças, para vencer este ultimo obstaculo, e, dentro de poucas horas, veremos os cabeços que rodeiam a caverna de Covadonga. Em leito de ramos tomar-vos-hemos sobre nossos hombros na margem fronteira: homens livres e gardingos, faremos mister de servos; porque sois uma dama e porque sois a irman do nobre e valente Pelagio... Astrimiro, mostrae que o risco só existe quando existe o temor.»

Então Astrimiro, olhando fito ante si, atravessou com passos firmes e ligeiros por cima do tronco arredondado e nodoso, e, n'um relanceiar d'olhos, achou-se do outro lado.

Hermengarda comprehendera bem a necessidade de colligir toda a robustez da sua alma naquelle momento; mas, ao erguer-se, conheceu que seus membros doridos e exhaustos quasi recusavam obedecer-lhe. Firmando-se, todavia, no braço de Gudesteu, encaminhou-se para o terreirinho exterior que se abria além dos vallos sobre a torrente. Ahi, antes de chegar ao temeroso transito, ajoelhou e, alevantando as mãos e os olhos [248] ao céu, nem sequer se lhe viam mover os labios, embebida em oração fervorosa e íntima. Com os seus trajos brancos e em completa immobilidade, dir-se-hia que era um destes anjos curvados sobre os lodams de capitel gothico, que, no frontispicio de cathedral, parecem ser o symbolo da morada das preces, se os primeiros raios do sol, cujo orbe mal despontava detrás das collinas, não revelassem nella a vida, scintillando-lhe nos cabellos dourados e no véu de duas lagrymas que lhe offuscava os olhos e começava a deslisar-se-lhe em dous fios brilhantes ao longo das faces, onde o rubor da febre rompia por entre a pallidez, como as papoulas rompem no meio da seara madura.

Depois de alguns instantes, alevantou-se de novo e encaminhou-se para o roble, cujo topo monstruoso se assemelhava á cabeça calva de um gigante que, inteiriçado, fincasse os pés na outra riba. Gudesteu seguia-a de perto, estendendo os braços involuntariamente, como querendo sustê-la, emquanto Astrimiro, tambem por um movimento machinal, em pé sobre as raizes torcidas da arvore e curvando-se para diante, lhe offerecia a mão robusta, como se a distancia lhe permittisse alcançá-la.

[249] No momento em que já punha o pé sobre o tronco, o reflexo alvacento da escuma, que fervia lá embaixo no meio do crepusculo frouxo do corrego profundo, e o estrepito da torrente, espadanando por entre os musgos e limos estampados nos pannos irregulares do despenhadeiro, fizeram abaixar os olhos a Hermengarda para o abysmo, como uma fascinação irresistivel, como um conjuro diabolico. Cravados naquelle horrendo espectaculo, fitos, espantados, ella não os podia despregar desse cahos infernal das aguas, que, redemoinhando ou jorrando contra os rochedos, ora negrejavam, precipitando-se compactas para diante, ora, repellidas, despedaçadas em ondas d'escuma, repuxando cruzadas no ar ou espalmando-se nas faces da penedia, misturavam no seu confuso soído um murmurar e rugir como de dôr, de colera, de desesperação, d'agonia, que vozes humanas não saberiam ajunctar e que só póde ser semelhante ao concerto de blasphemias dos condemnados, entoando o hymno atroz das eternas maldicções contra Deus.

E Hermengarda sentia uma ancia vertiginosa de se atirar áquella voragem; uma como attracção magnetica, voluptuaria, indizivel, a favor da qual luctava um sentimento [250] mysterioso e vago, mas que nem por isso era menos ardente, ao mesmo tempo que alma e corpo a repelliam pelo instincto e pelo amor da vida. Com as mãos contrahidas, a fronte pendida e o olhar incerto de um moribundo, a donzella parecia haver sido petrificada no momento em que dera a primeira passada para transpôr essa meta, além da qual, unicamente, existia a esperança.

Observando o gesto da irman de Pelagio, Gudesteu viu que um instante bastaria para anniquilar o fructo dos perigos até ahi corridos. Mais de uma vez, antes que se habituasse á sua vida de foragido, passando pelas bordas dos fojos, pelas arestas dos precipicios, elle proprio sentira essa fascinação do terror, esse magnetismo da morte que costuma subjugar-nos e attrahir-nos quando pelas primeiras vezes nos achamos sobranceiros a algum abysmo; sentimento de voluptuosidade dolorosa, que, paralisando-nos os movimentos, porque dobra em nós o terror, nos salva, talvez, do suicidio, ao mesmo tempo que para elle nos convida com attractivo inexplicavel.

O cavalleiro, segurando violentamente o braço da donzella, desfez aquella especie do encanto fatal, obrigando-a a recuar alguns [251] passos. Então Hermengarda, como se acordasse de um sonho, murmurou: «Não posso!»—E soluçava, e as lagrimas rolavam-lhe abundantes pelas faces macilentas. Em tremor convulso, os joelhos vergavam-lhe, e teria cahido por terra, se Gudesteu não a houvera sustentado.

Astrimiro, que vira o movimento do seu companheiro, atravessou de novo a arriscada passagem. Um pensamento horrivel passou a ambos pelo espirito: era que os arabes podiam chegar! Encararam-se mutuamente, e cada um delles notou que o outro tinha o gesto demudado. Gudesteu, volvendo a cabeça, lançou os olhos para a selva de que haviam saído, porque lhe parecera ouvir um rumor abafado. Astrimiro, que crera ouvir o mesmo, correu de novo ao vallo.

E o ruído soava, de feito. Os dous cavalleiros nem respiravam. Era um tropeiar de cavallos á rédea solta: não havia que duvidar. Para elles em alguns instantes se resumiu, então, um seculo de trances mortaes.

São nove: nove os que sáem da espessura, correndo desordenados, e que se precipitam para as ruinas. São godos! Os largos ferros dos frankisks lá reluzem, batendo-lhes sobre as coxas no rapido galope: o lodo dos brejos [252] ennodoa-lhes as armas escuras e pulidas. Ondeiam eriçadas as crinas dos corceis, cujos peitos mosqueia a escuma, cujos freios tinge o sangue. O mysterioso cavalleiro negro vem á frente delles.—«Ei-los!—brada Astrimiro, com uma especie de alegria phrenetica.—Estão salvos!»

«Salvos?!—interrompeu tristemente Gudesteu e, sem se mover, olhou para Astrimiro e, depois, para Hermengarda, que sustinha nos braços.

«Perdidos! perdidos comnosco e como nós!—replicou em tom lugubre Astrimiro, para quem a interrupção e o olhar de Gudesteu tinham sido um raio de luz medonha. O Sallia era a linha traçada pela feiticeira com a verbena magica, além da qual não passará jámais aquelle ante cujos pés ella a riscou. O juramento que tinham dado e, mais do que isso, a lealdade de guerreiros godos não lhes consentiam abandonarem a irman do seu capitão; não lh'o consentiria o fero cavalleiro negro, esse homem ou esse phantasma, cuja vida era um segredo, cuja vontade era de ferro, cuja voz era um terror para inimigos e, para os seus, um decreto de cima.

E os nove n'um relance transpuseram o valle, galgaram a ladeira e atiraram-se de [253] tropel ao meio das ruinas do arraial romano. O cavalleiro negro foi o primeiro em desmontar; os outros oito imitaram-no.

«Rapido, rapido!—disse elle—Lançae os cavallos para as brenhas, e atravessemos o Sallia! Não ha um momento que perder, se queremos salvar-nos.»

E ouviu-se um silvo accorde, unico, estridente de todos os recem-vindos. Os ginetes soltos desceram de novo a ladeira, respirando com violencia e seguiram a pista dos tres que pouco antes, ao sibillar d'Astrimiro, se haviam embrenhado na floresta, seguindo ao oriente as margens do Sallia.

O cavalleiro negro, porém, ao volver-se, recuou com um grito d'espanto, que não pôde conter: fora naquelle momento que vira Gudesteu e Hermengarda quasi desfallecida, que este amparava.

«Vós aqui?! Ainda aqui?!—exclamou elle, com gesto d'espanto misturado de afflicção e perdendo a compostura solemne e altiva que soubera até então conservar nas mais arriscadas situações, nos trances mais dolorosos.—Prestes passae o rio. Os infiéis seguem-nos de perto, e os seus esquadrões não tardarão a transpôr aquellas collinas. O Sallia é a unica barreira que póde tolher os [254] passos a esses corredores africanos, iguaes em robustez e ligeireza aos nossos corceis das montanhas. Irman de Pelagio!—accrescentou, dirigindo-se á donzella, que parecia alheia ao que passava juncto della, volvendo d'instante a instante para a borda do despenhadeiro um olhar de terror.—Irman de Pelagio, por Deus, que cobreis animo! Dous dos mais valentes guerreiros da cruz lá os deixámos despedaçados sob os pés da cavallaria arabe: estes que vedes breve acabarão nos gumes dos ferros inimigos, se não podérem salvar-vos. Juraram-no: hão-de cumpri-lo. Não vo-lo imploro por mim: não quero; não posso querer de vós piedade nem recompensa; mas os meus rogos são pelos irmãos d'armas do duque de Cantabria, pelos que têem misturado com as delle as lagrymas do desterro, com elle tragado o pão negro do proscripto. Diante do Senhor não vos pediriam conta do seu sangue; não valera a pena: mas, quem sabe se não vo-la pedirá o Christo pela sua religião, a Hespanha pela sua liberdade?»

Hermengarda não tinha ouvido ainda ao cavalleiro negro senão os sons quasi inarticulados do seu grito de guerra: agora, porém, estas palavras, proferidas em tom energico, mas com voz tremula, troaram-lhe nos [255] ouvidos, semelhantes á voz de alguem que na vida conhecera e que o sepulchro, provavelmente, tragara. O terror que lhe tolhia os membros redobrou com esta voz: por um impeto convulso de desesperação encaminhou-se, todavia, com passos incertos para a ponte fatal; mas, ao chegar a ella, recuou: tinha abaixado de novo os olhos para a torrente, e de novo a torrente, como um sortilegio diabolico, a havia fascinado.

«Por tudo quanto haveis amado, cavalleiros da cruz:—exclamou ella desvairada:—em nome do céu, abandonae-me! O desalento e o susto me abrigarão no seio da morte da violencia dos infiéis. Não posso!... Não posso vencer esse terrivel abysmo, que ha-de tragar-me!»

Os guerreiros de Pelagio, escolhendo aquella senda para a fuga, não haviam calculado com um coração feminino, mistura d'esforço e timidez, d'energia e de fraqueza, que será sempre para a philosophia um mysterio.

«Os arabes!—Esta palavra, cem mil vezes repetida na Hespanha, como o dobrar por finado em paiz assolado da peste, soou atrás dos cavalleiros apinhados juncto aos vestigios da porta decumana. Saira da boca de Astrimiro, que, sem deixar o vallo, tinha [256] a vista cravada nos visos dos montes fronteiros, até cujas gargantas se dilatava a selva.

Os guerreiros abriram subitamente aos lados, e olharam para as cumiadas da cordilheira coroadas de mosselemanos: os ferros pulidos dos frankisks, que tinham pendentes dos pulsos por uma cadeia de ferro, scintillavam levemente trémulos.

Só Hermengarda abaixou os olhos, e ajoelhou com as mãos erguidas no meio delles, murmurando:—Não posso! Abandonae-me!»

Então o cavalleiro negro, tomando-a pela mão, correu a vista pelas duas alas: no seu gesto havia a mesma expressão imperiosa e sinistra de que se revestira quando em Covadonga embargara a saída de Pelagio.

«Qual de vós ousa tomar nos braços a irman do duque de Cantabria e conduzí-la por cima do abysmo para a outra margem? Qual de vós ousa jurar sobre a cruz da sua espada que sem vacillar o fará?

Houve um momento de silencio: todos os rostos empallideceram; todos os labios calaram.

Um alarido de muitas vozes o interrompeu: eram os infiéis, que a meia encosta haviam [257] enxergado os fugitivos e que se atiravam para o valle.

«Não ha entre vós um que o ouse?—reperguntou o mysterioso guerreiro, fitando o olhar successivamente em todos.—Vai seguro o que o tentar. A entrada deste recincto é estreita, e os pagãos antes de chegarem ao Sallia passarão por cima do meu cadaver. Direis depois a Pelagio que sómente o cavalleiro negro lhe pede, a elle e a sua irman, algumas lagrymas em memoria de um tiuphado de Witiza, que deixou de viver... Chamava-se Eurico... Elle nos tenros annos ainda o conheceu em Tárraco... Fruela, Gudesteu, e tu Sancion, qual de vós será o mensageiro? qual de vós será o salvador d'Hermengarda?»

Todos calaram de novo; mas aqui não houve silencio: ouvia-se já o ruído dos corredores sarracenos, bem de perto, no fundo do valle.

E, ao proferir o cavalleiro negro o nome de Eurico, a irman de Pelagio soltou um gemido e deu em terra como se fora morta.

«Nenhum!—rugiu o guerreiro quasi suffocado de furor e de angustia: e, alongando a vista pelo portal do recincto, viu alvejar os turbantes, e, depois, surgirem rostos tostados, e, depois, reluzirem armas. Os arabes [258] começavam a galgar a ladeira. Astrimiro descera de um pulo do vallo.

A contracção d'agonia que neste momento passou nas faces do cavalleiro negro, estendendo para o céu os punhos cerrados, não haveria ahi palavras humanas que a pintassem. Não disse mais nada. Tomou nos braços aquelle corpo de mulher que lhe jazia aos pés e encaminhou-se para a estreita ponte do Sallia. Era o seu andar hirto, vagaroso, solemne, como o de um phantasma: parecia que as suas passadas não tinham som; que lhe cessara o coração de bater, e os pulmões de respirar.

Viram-no atravessar, lento como sombra; como sombra, lento, hirto, solemne, internar-se com Hermengarda na selva da outra margem.

Era um corpo ou um cadaver que conduzia? Estava morta ou estava salva?

Sancion e os demais godos tinham ficado immoveis d'espanto e de susto. Aquelle homem, menos habituado a transitar por meio dos precipicios das montanhas, commettera um feito, para o qual lhes fallecera o animo. Mal sabiam elles quanto os alcantis do Calpe eram mais asperos, os seus despenhadeiros mais frequentes, os seus corregos mais [259] fundos e quantas vezes esse homem os havia galgado na escuridão d'alta noite, por entre o redemoinhar e bramir do vento e das tempestades.

Foi por um momento rapidissimo que durou a immobilidade dos godos, porque tanto bastou ao cavalleiro negro para transpôr a breve largura do Sallia e sumir-se na floresta que, descendo das montanhas fronteiras, vinha quasi tocar na borda dos alcantis pendurados sobre as aguas.

Os dez guerreiros, uns após outros, galgaram ligeiros por cima do roble nodoso, sem abaixarem os olhos para a especie de sorvedouro negro, revolto, ruidoso, que, mugindo lá embaixo, parecia, com seu estrepito violento, tentar attrahí-los e devorá-los.

Sancion foi o derradeiro a passar: a meio rio sentiu após si o tumulto dos arabes que se precipitavam dentro dos arruinados vallos romanos. Não titubeiou e seguiu ávante. Chegando á margem opposta, volveu os olhos e viu que alguns dos inimigos punham pé em terra e, cegos na sua furia, se arrojavam para a ponte fatal.

«Godos, aqui!—gritou elle; e o primeiro golpe do frankisk deu um som baço, entrando nas raizes ainda vivas da velha arvore.

[260] E, manso e manso, os agarenos, lançando-se ao comprido sobre o cepo que estremecera ao golpe de Sancion e segurando-se ás cavidades do velho tronco e ás asperezas do seu grosseiro cortex, se approximavam, semelhantes ao estellio que se arrasta, nas ruinas de Balbek, ao longo de columna tombada.

Christãos e infiéis fizeram silencio: era uma destas situações em que a voz expira na garganta; porque o viver parece quasi paralisar-se.

E os arabes avançavam sempre, e os golpes das pesadas secures godas batiam roucos e cada vez mais violentos e repetidos nas raizes que estalavam, lascando; e já os olhos esverdeados de colera, faiscantes, desvairados dos infiéis, cujas barbas negras varriam o tronco, se encontravam com o olhar torvo de Sancion, curvo, vibrando golpes sobre golpes, e cercado de alguns companheiros que o imitavam,—aquelles a quem o consentia a apertura do sitio, emquanto os outros, com os frankisks nas mãos, se preparavam para repellir os inimigos, que só um a um poderiam transpôr a estreita passagem.

Subitamente estouram as ultimas fibras do lenho: a arvore monstruosa despenha-se da sua base de pedra, escapa da riba fronteira, [261] tomba pelas pontas dos rochedos limosos, fa-las voar em rachas e bate sobre o dorso da torrente, cujo ruído não póde devorar inteiramente o alarido dos infiéis precipitados, que deixam os fragmentos das armas, dos vestidos e dos membros pendentes dos bicos das rochas. As aguas, espadanando, trepam em lençoes d'escuma pelas paredes anfractuosas do precipicio e lambem o sangue que por instantes as tingiu. Depois, o grosso madeiro fluctua, deriva pela corrente e lá vai, d'envolta com ella, em demanda das solidões do mar.

Os arabes que enchem o recincto das ruinas recuam diante de tão horroroso espectaculo: os godos enviam-lhes uma risada feroz de insulto e desapparecem na espessura das brenhas que se dilatam até as raizes da montanha d'Auseba, onde deve ser o termo da sua viagem.



XVII

A AURORA DA REDEMPÇÃO



Desprezamos essa multidão de pagãos, e nenhum temor ha em nós.

Sebast. de SalamancaChronicon.


O espectaculo que offerecia a caverna de Covadonga na noite immediata áquella que se terminou com os successos das margens do Sallia era mui semelhante ao dess'outra noite em que Pelagio recebera a nova do captiveiro d'Hermengarda;—espectaculo semelhante, mas personagens, em parte, diversas. [263] Na vasta lareira proxima da entrada da gruta e a que servia de chaminé uma larga fenda dos rochedos superiores ardiam alguns cepos de carvalho, que, repassados do fogo durante uma longa noite de novembro e abrazados até a medúlla, davam apenas uma chamma tenue e azulada, cujo fraco esplendor se perdia na claridade brilhante de cinco ou seis fachos encostados pelas paredes irregulares da caverna. Do numeroso tropel de guerreiros que naquella memoravel noite se tinham erguido á voz do moço duque de Cantabria, travando das armas, apenas se viam agora, estendidos nos grosseiros leitos formados das pelles de animaes bravios, dez cavalleiros, que no seu profundo somno, no transfigurado do gesto e no desalinho dos trajos faziam antes lembrar o jazer de cadaveres, que o repousar de vivos. Perto do lar acceso, assentado em escabello tosco e com a cabeça encostada ao braço firmado n'uma anfractuosidade do rochedo, via-se, tambem adormecido, um guerreiro em cujo rosto os sulcos das rugas e o cavado das faces davam, porventura, mostra de mais dilatada vida do que, na realidade, era a sua. O somno parecia nelle unicamente o entorpecimento das forças physicas exhaustas e [264] não o repouso do espirito; porque, de quando em quando, os membros se lhe agitavam por estremeção violento, ou se lhe descerravam os olhos, e moviam os labios, como se tentasse falar; mas sussurrava apenas alguns sons inarticulados e cahia de novo em torpor, que não tardava em ser outra vez interrompido. N'um recésso da gruta, formado pelos resaltos das rochas e que servia como de camara ao joven capitão dos foragidos, parecia tambem jazer um vulto sobre telas mais delicadas que os despojos d'animaes silvestres, as quaes eram, talvez, ainda restos do anterior luxo dos paços de Tárraco; talvez, vestigios da passada grandeza dos duques de Cantabria e da antiga civilisação gothica. Um panno de purpura franjado d'ouro pendia da abobada natural, preso nas stalactites seculares que della desciam, semelhantes aos penduróes do tecto de um templo normando-arabe. A luz dos fachos mal alumiava aquelle recanto affastado; mas nessa meia-claridade branquejavam roupas alvas de mulher, que tambem parecia agitada por sonhos dolorosos, se é que o seu gemer de espaço a espaço, o soluçar contínuo, o agitar-se d'instante a instante não eram antes indicios dessa modorra febril, dessa hesitação entre [265] o dormir e a vigilia, semelhante ao arquejar do moribundo que já perdeu a consciencia da vida que vai fugindo. No meio desta scena de duvidosa quietação uma personagem velava. Era o moço Pelagio, que, atravessando a caverna a passos lentos e cautelosos, de um para outro lado, ora applicava o ouvido aos movimentos irrequietos e ao respirar agitado do vulto branco, ora parava á entrada da gruta, fitando os olhos na escuridão exterior e escutando com todos os signaes d'impaciencia de quem espera alguem que tarda. Depois, dirigia-se para o lado do vermelho brasido e, cruzando os braços, punha-se a contemplar o torvo aspecto do cavalleiro do escabello, com um olhar de sympathia e compaixão, misturada do que quer que era de admiração e de terror involuntario.

Estes movimentos successivos do mancebo repetiram-se umas poucas de vezes; por fim, a figura membruda e selvatica do lusitano Gutislo assomou no arco irregular que servia de portico áquella habitação roubada pela desventura ás feras.

«Voltaram?—perguntou em voz baixa ao barbaro do Herminio o duque de Cantabria.

«Desmontam agora:—respondeu Gutislo:—Vellido, [266] o centenario, disse-me viesse vêr se repousavas.»

«Repousar!—replicou Pelagio, sorrindo tristemente e olhando para o sitio onde o panno de purpura occultava o vulto branco. «Que venha; que venha já.»

Gutislo desappareceu. D'ahi a alguns momentos, o centenario entrava.

Era um guerreiro, cujos cabellos brancos, cujos meneios pausados e cujo olhar penetrante davam testemunho de prudencia e discrição. Parecia inquieto e assustado.

«Que novas nos trazes, Vellido? Qual caminho seguem os arabes?»

«O que prouvera a Deus elles nunca houvessem encontrado. Ao amanhecer os cavallos africanos beberão as aguas do Deva; os sons das trombetas agarenas ouvir-se-hão retumbar pelas encostas de Concana e ecchoarão nos alcantís do Auseba. Vagueiámos dispersos a tarde inteira e a maior parte da noite. Pelas alturas do sul e do oriente reluziam ao longe as armas dos infiéis, e depois as suas almenaras. Os pastores asturios, que já nos esperavam no valle d'Onis, onde todos os esculcas se ajunctaram á hora de terça nocturna, nos relataram então o que, [267] sumidos por entre as brenhas, tinham podido observar de perto...»

«E quaes foram as novas dos pegureiros?—interrompeu vivamente Pelagio.—São muitos ou poucos os inimigos? A que distancia se acham?»

«Pouco depois do amanhecer devem ter descido os ultimos outeiros do Vinnio e quando o sol brilhar em todo o seu esplendor poderão pisar o solo, até hoje livre, do valle de Covadonga. Os pastores viram os nossos cavalleiros transpôrem o Sallia: viram despenhar-se o roble, e os infiéis recuarem espantados. Mas, esquadrões após esquadrões desciam das montanhas, e dentro em breve na margem do rio não se descortinavam por grande espaço senão tropeis d'arabes. Ao pôr do sol ainda as gargantas das serranias golfavam torrentes de infiéis, e as selvas retumbavam com os golpes de machado. Antes de anoitecer, uma ponte espaçosa estava lançada sobre o Sallia n'um sitio menos profundo, e os inimigos começavam a atravessá-la. Entre os primeiros que passaram áquem, asseguram os zagaes terem visto muitos cavalleiros que, pelos elmos e couraças, pelas cateias e frankisks, eram, sem duvida, godos.»

«São as tiuphadias da Tingitania: são os [268] soldados réprobos do conde de Septum, que Deus conduz aos desertos das Asturias para que os abutres e javalís tenham lauto banquete de cadaveres.»

Pelagio e o centenario voltaram-se: a voz que proferíra estas palavras soára atrás delles. Era o cavalleiro do escabello, que despertara ás primeiras palavras do capitão dos esculcas e que, firmados os cotovelos sobre os joelhos e com a cabeça entre os punhos, escutara todo o dialogo.

«Que?!—exclamou o mancebo—ainda ha pouco havieis cerrado as palpebras, e já despertastes, Eurico?»

«Duque de Cantabria, desde muito que o somno é sempre breve para mim: ha muito que nestas veias elle não derrama consolação nem frescor. Adormecido ou desperto, o meu espirito vê sempre ante si immutavel a realidade, e a realidade é medonha. Oxalá podesse esta alma dormir!»

«Bem o sei:—replicou o filho de Favila.—A imagem da patria, sancta e melancholica, se misturava sanguinolenta nos vossos sonhos do dormitar. Algumas palavras soltas que proferieis...»

«Ah!—interrompeu o cavalleiro, pondo-se em pé rapidamente, com um gesto d'espanto.—Eu [269] falava?! Eram tão extravagantes os meus sonhos!... Que palavras me ouvistes? Delirios, loucuras!... Dizei; não é assim?»

E olhava inquieto para o mancebo, como se receiasse que um segredo importante lhe houvesse fugido dos labios.

«As vossas palavras eram quasi inintelligiveis—respondeu Pelagio.—Perdida para sempre; para sempre!—Eis o que repetieis muitas vezes; e depois:—Não resta uma esperança!... Oh, tão formosa e gentil!... Homem infame, que tinhas em mais o ouro que a virtude e a gloria, maldicto sejas tu!—E então os dentes vos rangiam, e, entreabrindo os olhos, o vosso aspecto era terrivel! Pensaveis, por certo, na Hespanha, na formosa terra dos godos, e a indignação vos arrancava maldicções contra Oppas, e contra os que venderam pelo ouro dos arabes as aras de Christo e a liberdade de seus irmãos. Enganaram-vos, porém, os sonhos, cavalleiro! A esperança resta ainda, e a Hespanha não se perdeu para sempre! Vós mesmo agora o dissestes. Abundante cevo de cadaveres humanos vão ter os abutres e os javalís das montanhas.»

«Tendes razão!—replicou o guerreiro, [270] deixando-se cahir de novo sobre o escabello e voltando á postura anterior.—Os meus labios mentiram ao coração, se disseram que para a Hespanha não havia esperança. Mas a mentir não tornarão elles, porque estes olhos só hão-de cerrar-se, já agora, em somno bem profundo, no qual não haja sonhar! Depois dos combates é que se dorme bem placidamente! É então que eu dormirei.»

Era sinistro e lugubre e, todavia, tranquillo o modo com que elle o dizia. Pelagio, preoccupado pelas novas que o centenario trouxera, não reparou no sorriso doloroso que enrugava as faces de Eurico e, voltando-se para Vellido, proseguiu:

«Oh! Abdulaziz busca a ultima guarida dos christãos, os ultimos aripennes de terra livre da Hespanha: persegue-nos como a besta-feras?... Pois bem! Vai, e dize aos nossos cavalleiros que antes de romper a manhan estejam a cavallo com a lança em punho promptos a marcharem para a entrada do valle. Os fundeiros e mais buccellarios de pé que se preparem para subir aos pincaros sobranceiros por ambos os lados do arraial. Dize-lhes, tambem, a uns e a outros, que sem demora eu serei com elles.»

O centenario saiu.

[271] Pelagio chegou-se então aos que dormiam e, despertando-os um a um, fe-los approximar da boca da gruta:

«Vedes vós a estrella matutina que empallidece?—disse, apontando para um breve espaço do firmamento, onde, atravez do portal irregular, se via fulgir o planeta Venus.—Não tarda muito que ella desappareça mergulhada na vermelhidão da aurora. Essa vermelhidão tingirá em breve o céu, como o sangue ha-de hoje tingir a terra: mas confio em Deus que, tambem, como após ella ha-de surgir o sol envolto no seu fulgor glorioso, assim a cruz e o nome dos godos se alevantarão triumphantes, após o sangue vertido por esses dous objectos sanctos e queridos, que nos tem alimentado a energia da alma no meio dos trabalhos e perigos. Guerreiros! os arabes seguiram as vossas pisadas. Abdulaziz e Juliano, um insensato e um renegado, ousaram approximar-se ao antro dos leões d'Hespanha, e os leões hão-de despedaçá-los. O céu condemnou-os: diz-me íntima voz que elle os condemnou, inspirando-me um estratagema a que os infiéis não poderão resistir.»

No gesto de Pelagio, ao proferir estas palavras, estava estampada a expressão da confiança, [272] do esforço e do enthusiasmo; daquelle enthusiasmo que elle sabía communicar aos que o ouviam e que, na situação quasi desesperada em que se achavam os foragidos das Asturias, fizera com que lhe cedessem voluntariamente o mando supremo os mais velhos e experimentados guerreiros.

Pelagio expôs em breves palavras os seus desenhos para obter dos arabes um triumpho completo. O caminho que seguiam devia forçosamente trazê-los ás gargantas das serras. Collocados na entrada do valle, uma parte dos cavalleiros offerecer-lhes-hiam debil resistencia, cedendo pouco a pouco e retirando-se para o topo daquella especie de caldeira cortada nas montanhas: apenas ahi chegados, abandonando os ginetes, precipitar-se-hiam para a caverna, aonde já se teriam acolhido as mulheres, creanças e velhos dispersos pelas tendas do campo, e em cujo estreito e escarpado portal poucos pelejadores bastavam para resistir á multidão dos inimigos. Então o grosso dos cavalleiros, em cilada nas selvas que se dilatavam para as alturas, á esquerda das gargantas do valle, acommette-los-hiam pelas costas, emquanto os buccellarios, sumidos pelas penedias, lá no alto dos barrocaes que formavam como [273] um muro de ambos os lados do arraial, fariam chover sobre os infiéis as armas de arremesso, sem que a estes fosse possivel repelli-los, ignorando os caminhos que conduziam áquelles logares, na apparencia só accessiveis ás aguias e aos abutres, que alli tinham, de feito, a sua guarida solitaria.

«Mas a vós, cavalleiros—concluia Pelagio—que provastes extremos de esforço na correria a que devo a salvação de minha pobre irman, a vós pertence o acabar a victoria que o Senhor nos vai dar. Ha mais de um anno que as nossas mãos se tem callejado a alluir os penhascos que coroam o tecto desta caverna; ha mais de um anno que raro dia se passa sem que o suor das nossas frontes os humedeça, ao tombarmo-los lentamente para a borda do despenhadeiro que se eleva a prumo sobre o ádito deste recincto. Ahi, acompanhados dos meus robustos cantabros e dos selvagens do Herminio, será o vosso pelejar: ahi, quando os inimigos, apinhados ante aquelle portal, se arremessarem contra os guerreiros que o hão-de defender; quando as trombetas dos que os ferirem pelas costas soarem uma toada de morte, e os invisiveis buccellarios fizerem chover sobre os infiéis os tiros de funda, as settas e os dardos, [274] cumpre que esses rochedos que, lá no cimo, parecem embebidos na penedia, cáiam rapidamente e esmaguem os esquadrões cerrados dos inimigos da Hespanha. Pelo caminho talhado na rocha sobre as nascentes subterraneas do Deva, ireis assentar-vos no cume do Auseba, e o anjo do exterminio pairará juncto de vós: sereis a intelligencia que guie o duro braço dos cantabros e dos lusitanos para lhes dirigir os golpes, para os reter quando, rareiados, confundidos, esmagados os troços da serpente maldicta que ousa colleiar juncto de Covadonga, nós podermos arremessar-nos ao meio delles e fazer cahir sobre a cabeça dos pagãos os golpes dos nossos frankisks, não menos destruidores que os rochedos despenhados.

«Como assim?!—replicou Sancion, que por vezes estivera a ponto d'interromper o mancebo.—Nós, próceres e gardingos, nós que meneiamos a facha e a espada; nós que trajamos o ferro, combateremos, como os servos e vís, de longe e sem risco? Nós, que por tantas milhas através das serras démos as costas aos infiéis, não poderemos, embebendo-lhes as espadas no peito, dizer-lhes emfim:—Eis-nos aqui?...—Pelagio, isso é impossivel!»

[275] «Impossivel!—repetiram todos os outros cavalleiros apinhados ao redor de Sancion.

«Impossivel é—interrompeu o duque de Cantabria com gesto severo—que haja guerreiros christãos que recusem obedecer-me, no momento em que se tracta, não de ambições de gloria, mas da redempção da Hespanha. Cavalleiros, o esforço de vossos corações vos engana! Exhaustos pela correria da proxima noite, os braços vos desmentiriam o animo, e eu não consentirei jámais um sacrificio inutil, quando de outro modo podeis contribuir para salvarmos as Asturias. Gutislo!—clamou elle approximando-se da boca da caverna—dize aos teus irmãos do Herminio que venham aqui e ao quingentario da minha tiuphadia que vos siga com os soldados cantabros. Sancion, Gudesteu, Astrimiro, Énecon, vós todos que me cercaes, eis alli o vosso caminho! Parti.»

E apontava para um lado da gruta, onde quem chegava ao perto via, lá em cima, o céu estrellado, por uma especie de claraboia natural, e, quasi debaixo dos pés, um como sorvedouro escuro, em cujas profundezas se percebia o ruído das nascentes do Deva. Na circumferencia daquelle abysmo, desde o chão da caverna, os foragidos, aproveitando as escabrosidades [276] das paredes circulares, tinham formado uma escada tosca, ora cavada na pedra, ora firmada sobre troncos de arvores fixos nas fendas e cavidades da rocha, e que, lançada em espiral, saía perto do cimo calvo do Auseba. Assim, quando o valle fosse occupado dos sarracenos, os christãos poderiam defender-se por largo tempo, obtendo por esse caminho occulto os soccorros dos montanheses.

Entre os cavalleiros a quem Pelagio dirigíra aquellas palavras houve alguns instantes de hesitação, e um murmurio de descontentamento; mas, por fim, Sancion, pegando em um dos fachos, encaminhou-se para a escada subterranea, e os outros seguiram-no. Os quasi selvagens filhos do Munda, vestidos de pelles de alimarias, e os cantabros, cujas feições e trajos tambem revelavam a sua origem celtica, não tardaram a entrar na caverna. Pelagio então lhes ordenou obedecessem aos guerreiros que os haviam precedido, e em breve o som das passadas daquelle tropel desordenado, alongando-se pelo abysmo, morreu em silencio total.

Eurico parecia indifferente ao que se passava ao pé delle, assentado no escabello e com os olhos cravados no cepo candente que [277] se consumia no afumado lar. Pelagio voltou-se para elle, e disse-lhe:

«Vós, Eurico, ficareis aqui: vós que salvastes minha irman, sereis o seu guardador. Quem melhor vigiaria por Hermengarda do que esse homem que nella tem um testemunho perenne do mais indizivel esforço, da mais pura e generosa lealdade? Desejaria ver juncto de mim no combate o melhor guerreiro da Hespanha: ter-vo-lo-hia, até, pedido quando o mysterio em que vos involvieis nos fazia suspeitar a todos que vós, o cavalleiro negro, ereis um ente privilegiado e não um mortal como nós. Agora, porém, depois que no trance horroroso das margens do Sallia nos revelastes quem sois, quando, resolvido a morrer, pedieis apenas algumas lagrymas para a vossa memoria áquelles que vos sobreviviam, pedir-vos-hei eu, tambem, que não queiraes encontrar o primeiro impeto dos sarracenos. Se na defensão desta nossa triste morada, aonde cumpre attrahi-los, for necessario o auxilio do vencedor dos vasconios, do mais illustre dos tiuphados de Witiza, ou se a colera de Deus ainda não está satisfeita, e devem hoje perecer os ultimos homens livres da Hespanha, vireis vós morrer comnosco. Entretanto, continuae a [278] ser o anjo da guarda da pobre filha de Favila. Ella parece mais tranquilla, e o monge Bacchiario, em cuja sciencia tem achado allivio tantos de nossos irmãos, recommendou o repouso como o melhor remedio para a febre que a devora. Retardarei quanto podér o instante de se acolherem aqui as mulheres, as creanças e os velhos inuteis para o combate. Fazei, entretanto, que nestes logares reine profundo silencio.»

Silencio guardava o cavalleiro: no seu olhar incerto e scintillante descobria-se que lá, naquella alma, tumultuavam paixões violentas e oppostas. Não respondeu; nem Pelagio lhe dera para isso tempo. Crendo ler no seu gesto perturbado a mesma repugnancia que tinham mostrado os outros guerreiros em não assistir ao primeiro recontro dos infiéis, o duque de Cantabria atravessou apressado a boca da gruta e desceu a senda tortuosa que conduzia ao fundo do valle. D'ahi a pouco, sentiu-se o galopar de um cavallo á rédea solta, que se confundiu, por fim, no sussurro longinquo do arraial que se agitava, preparando-se para o temeroso dia que pouco tardaria a nascer.

Eurico estava, emfim, só.



XVIII

IMPOSSIVEL!



Nada neste mundo me agita o seio, senão o teu amor.

Lenda de S. Pedro Confessor—9.


Apenas Pelagio transpôs o escuro portal da gruta, Eurico alevantou-se. Aspirava com ancia, como se aquelle ambiente tepido não bastasse a saciá-lo. O desgraçado resumia n'um pensamento devorador, n'uma synthese atroz, o seu longo e doloroso passado e o seu torvo e irremediavel futuro. Como voltara [280] áquelle logar? Como, sem lhe vergarem os joelhos, tinha elle descido das alturas do Vinnio com Hermengarda nos braços? Que tempo durara essa carreira deliciosa e ao mesmo tempo infernal? Não o sabía. Imagens confusas de tudo isso eram apenas o que lhe restava,—do sol, que pouco a pouco lhe viera alumiar os passos, dos ribeiros que vadeiara, das penedias agras, dos recostos dos montes, das selvas que recuavam para trás delle, dos cabeços negros que, ás vezes, lhe parecera debruçarem-se no cimo dos despenhadeiros, como para o verem correr. No meio destas recordações incertas e materiaes outras passavam íntimas, ardentes, voluptuosas, negras, desesperadas. Por horas, que haviam sido para elle uma eternidade de ventura, o respirar daquella que amava como insensato se misturara com o seu alento; por horas sentira o ardor das faces della aquecer as suas, e o coração bater-lhe contra o seu coração. Depois, avultavam-lhe no espirito a imagem veneranda de Siseberto e o altar da sé d'Hispalis, juncto do qual vestira a pura stringe de sacerdote, e Carteia e o presbyterio e as noites de agonia volvidas nos ermos do Calpe. E tudo isto se contradizia, se repellia, se condemnava, o amor pelo sacerdocio, [281] o sacerdocio pelo amor, o futuro pelo passado; e aquella alma, dilacerada no combate destes pensamentos, quasi cedia ao peso de tanta amargura.

Eurico deu alguns passos e encostou-se á boca da gruta; porque os membros exhaustos lhe fraqueiavam, apesar de que nem um momento o abandonasse a força da sua alma energica. A brisa frigidissima da madrugada consolava-o como ao febricitante a aragem de um sol-posto do outono. A seus pés estavam as trevas do valle, sobre a sua cabeça as solidões profundas e serenas do céu semeiado dos pontos rutilantes das estrellas e mal desbotado ao occidente pela ultima claridade da lua minguante que desapparecia. Era a imagem da sua vida. Serena e esperançosa, como o crepusculo do luar fugitivo, lhe fora a juventude. Desde que um amor desditoso o fizera alevantar uma barreira entre si e o ruído do mundo; desde que se votara ás solemnes tristezas da soledade e a derramar beneficios e consolações sobre a cabeça dos miseraveis e humildes; pela alta noite do seu viver muitas vezes fulgurara uma luz de alegria, como esses astros que brilham a espaços nos abysmos do firmamento: lá, ao menos, havia instantes em que se esquecia [282] do seu destino. Mas, depois que o phrenesi das batalhas o arrastara; depois que trocara as harmonias das tempestades do Calpe e o rugido das vagas do Estreito pelo gemer de moribundos nos combates e pelo retinir dos golpes, nunca mais descera um raio de cima a alumiar-lhe o espirito. O seu presente e o seu porvir eram, como esse valle, um precipicio sem fundo, indelineavel, tenebroso e maldicto.

E pelo céu tão placido e melancholico; pelo céu, que elle ás vezes se punha a contemplar ás horas mortas no pobre presbyterio de Carteia ou assentado em algum promontorio, a sua imaginação voou até os desvios do sul, e as lagrymas de saudade começaram a rolar-lhe mansamente pelas faces. O desventurado tinha saudades das tristezas do ermo, porque já não podia ter desejos dos contentamentos humanos.

Engolfado naquellas cogitações dolorosas, o guerreiro conservou-se por algum tempo immovel e com os olhos cravados nos astros scintillantes, que pareciam sorrir-lhe e chamá-lo para o seio immenso do Senhor. As lagrymas correram-lhe então mais abundantes, e o coração parecia dilatar-se-lhe com o pensamento da morte. Insensivelmente ajoelhou [283] e estendeu as mãos para o firmamento: os seus labios murmuravam com cicío quasi imperceptivel. Era a oração d'alma, férvida, procellosa, que os agitava: era essa oração que todos nós sabemos no momento de suprema agonia e que nenhumas palavras, nenhuma escriptura poderiam representar; oração que é um mysterio entre Deus e o homem e que nem os anjos comprehendem; gemido energico de todas as miserias terrenas, cuja intensidade só a providencia, que as accumula ou dissipa, sabe pesar nas balanças da justiça e da piedade divinas.

A morte; esta idéa, tremenda, indifferente ou formosa, segundo a vida é risonha, pallida ou negra, veio suavisar o martyrio daquella alma attribulada, como em estio ardente as grossas aguas da trovoada refrigeram a terra, que estûa sob os raios aprumados do sol. Tinha-a buscado; buscado com a placidez horrivel da desesperança; como um remedio de cuja efficacia a consciencia da immortalidade o fazia duvidar. Sería não mais do que ir deitar-se em leito de dores eternas? Talvez: mas a mudança podia ser refrigerio: tanto bastava. A morte parecia, comtudo, fugir delle para que nem este ultimo desejo se lhe cumprisse. Houve um instante [284] em que lhe occorreu o pensamento de subir ao pinaculo escarpado do Auseba e despenhar-se no valle. Refugiu d'esta idéa, porque era covarde. Eurico, o sacerdote soldado, não devia fenecer impia e vilmente; devia depôr o peso intoleravel da vida no campo das batalhas pelejadas em nome da cruz e da Hespanha. E no recontro daquelle dia, uma voz íntima lhe murmurava que o havia de obter.

Este anhelar pela morte era uma bem triste cubiça! E quando se lembrava de que essa mulher que ahi jazia a poucos passos delle; essa mulher, em cuja adoração concentrara todos os affectos dos mais formosos dias da vida; cuja imagem sonhada nas solidões do Calpe, desenhada de contínuo diante dos olhos da sua alma, gravada como um sello de saudade e de amargura em todas as suas cogitações; essa mulher que, pouco havia, por horas de delicioso delirio, apertara contra o peito, e o podera, outr'ora, tornar o mais feliz dos homens; quando se lembrava de que sobre isso tudo elle deixara cahir a campa de bronze do sacerdocio, que ninguem podia erguer, o desgraçado sentia estalarem-lhe uma a uma todas as fibras do coração, e fugir-lhe do seio um grito semelhante ao que rebenta dos labios do condemnado [285] ao supplicio do potro, no primeiro movimento da mão pesada do algoz.

E, como se quizesse ainda mais saciar-se de dor, encaminhou-se para o lado onde Hermengarda repousava. Ao clarão da tocha que espargia uma luz mortiça, o guerreiro contemplou-a naquelle inquieto dormir. Era bella; mais bella que nos tempos da primeira mocidade! O seu gesto angelico, desbotado pela pallidez, emmagrecido pelos pesares e terrores, ganhara em expressão, em reflexo dos íntimos pensamentos o que perdera em viço e em toques d'innocencia. Bonina desabrochada nos campos da vida, brilhara com todas as pompas do seu vecejar á luz da manhan; o ardor intenso do meio-dia a fizera pender; a viração da tarde lhe traria, talvez, ainda frescor e viveza; mas a sua fragrancia perdia-se nas auras que passavam; nas suas côres harmoniosas revia-se, apenas, o céu! Aquella alma fugia solitaria pela terra n'um viver incompleto e volveria aos abysmos da creação sem conhecer o mais profundo e energico dos affectos humanos, o amor, que une dous espiritos como dous fragmentos de um todo, os quaes a providencia separou ao lançá-los na terra, e que devem buscar-se, unir-se, completar-se, até irem, depois da morte, [286] formar, talvez, uma só existencia de anjo no seio de Deus.

Mas quando Eurico se lembrou de que, porventura, isto era um sonho; de que podia ser que essa alma não passasse na vida tão vazia e solitaria como elle julgava, e que esse coração que poucas horas antes pulsára tão perto do seu batia, acaso, por outrem, sentiu o suor frio manar-lhe da fronte. A tocha baça e funebre que mal alumiava a irman de Pelagio pareceu-lhe retincta em sangue; e, como o cedro arrancado por tufão repentino, foi encostar-se á rocha lateral, cuja superficie irregular lhe escondia Hermengarda. O vê-la despertara todo o delirio do seu primeiro amor, e aquella idéa intoleravel, que tantas vezes o atormentara nas solidões do Calpe, espremia-lhe agora o coração com redobrado furor.

E assim ficou por alguns momentos mudo, anhelante, anniquilado. Quem era, onde estava, porque viera alli, não o saberia dizer: os pensamentos revolviam-se-lhe na mente, como as ondas n'um sorvedouro maritimo, tempestuosos, rapidos e indistinctos.

De repente, um ai comprimido veio acordá-lo daquella especie de torpor doloroso. Estremeceu. Era a voz de Hermengarda. Approximou-se [287] manso e manso, de modo que ella o não visse. Assentada sobre o leito, demudado o gesto, e com o susto pintado no olhar, a irman de Pelagio estendia os braços, voltando o rosto para o lado, como quem tentava affastar visão medonha. Pelas suas palavras incoherentes e truncadas, o guerreiro conheceu que um sonho máu a agitava, até que, inteiramente desperta, essas palavras confusas se começaram a coordenar em periodos intelligiveis. O pulsar do coração d'Eurico redobrava de violencia, ao passo que o seu respirar se ia tornando cada vez mais imperceptivel.

«Sempre elle! sempre esta visão de remorso!—murmurou Hermengarda.—Meu pae, meu pae! Perdoe-te o céu o orgulho com que repelliste o gardingo... Perdoe-te o céu o haveres-me obrigado a sacrificar aos pés desse orgulho o sentimento de amor que se alevantara neste coração. Nós ambos assassinámos o desgraçado; mas a punição cahiu inteira sobre mim! Embora. Eu não te amaldicçoarei, oh meu pae! A tua filha nunca te accusará ante o supremo juiz.»

Depois, ficou por alguns instantes calada, com os olhos fitos no rochedo fronteiro, em cuja face escabrosa as sombras pareciam dançar [288] e agitar-se á luz da tocha que ardia a curta distancia, e que a aragem movia. Crera perceber perto de si um gemido abafado, cortando fugitivo o grande silencio nocturno.

«Vai-te, vai-te!—proseguiu ella.—Que posso eu fazer-te, infeliz?... Bem longo e atroz tem sido o meu martyrio, porque ainda não achei no mundo alma com quem me fosse dado repartir o calis do infortunio; a quem houvesse de contar os tormentos que ha tanto tempo me varreram dos labios o sorrir. Se vivesses, sería tua; tua esposa, tua escrava!... mas a benção nupcial não póde descer entre o tumulo e a vida. Favila!... meu pae!... diante do throno do Senhor, onde são iguaes o duque e o gardingo, jura-lhe que tua filha repelliu o seu amor por obedecer-te: dize-lhe que o pranto correu destes olhos ao ouvir a nova da sua morte. Oh, dize-lhe, dize-lhe que não fui eu que o assassinei!»

E aqui, deixando pender a cabeça sobre o peito, pareceu voltar ao sentimento da realidade; mas aquella especie de terror febril que lhe haviam gerado no espirito os trances, qual mais doloroso, por que successivamente passara, se tornou a apossar della. Favoreciam-no o logar, a hora, o silencio. Hermengarda alevantou de novo os olhos desvairados [289] e, firmando-se no rochedo, tentava erguer-se.

«Era Eurico!—murmurou ella.—Depois de dez annos, bem conheci a sua voz! Mais triste, só: triste, como tantas vezes a tenho ouvido nos meus sonhos de remorsos! Bem conheci o seu gesto! Mais pallido e carregado, só: pallido e carregado, como tantas vezes tem surgido do sepulchro para vir mudamente accusar-me, silencioso e quedo ante mim, por longas e não dormidas noites. Era elle!... um espectro cujo coração eu sentia bater, cujos braços me apertaram por cima do abysmo revolto, através da floresta, pelos recostos das serranias. Dos seus olhos cahiu sobre o meu seio uma lagryma! As lagrymas dos mortos queimam... devoram a vida; porque bem sinto a morte chamar-me...»

Tinha-se posto de joelhos e, com as mãos estendidas, parecia implorar piedade.

«Morrer! tão cedo! Quando apenas tórno a vêr meu irmão?!... Pelagio! Pelagio! porque me deixaste? Vem despedir-te da tua pobre Hermengarda. Eurico a espera para o noivado do sepulchro, e eu não posso tardar.»

E desvairada, poz-se em pé, chamando por Pelagio com voz suffocada. Apenas, porém, dera os primeiros passos, soltou um [290] gemido agudo e ficou immovel. Diante della, realidade ou phantasma, estava a origem dos seus terrores secretos. Era o gardingo que a amara, que ella cria morto, e cuja imagem vingadora vinha mais uma vez atormentá-la. O vulto cravara nella um olhar ardente, que a fascinava. Sorriso doloroso lhe pousava nos labios. Estendeu o braço, segurando a mão de Hermengarda, que pretendeu recuar e não pôde. Como petrificada, parecia que os pés se lhe haviam enraizado no chão da caverna. Aquella mão, que segurava a sua escaldando de febre, era gelada como a de um morto. A vida do gardingo tinha-se concentrado toda no coração, que lhe despedaçavam duas idéas, horriveis porque associadas: o amor correspondido e tornado ao mesmo tempo maldicto, monstruoso, impossivel por uma palavra fatal, que lá estava escripta em caracteres de fogo, e que elle via, escutava, sentia—o sacerdocio!

«Oh, Deus t'o pague!—disse Eurico em voz baixa e lenta—que lançaste na tão longa noite da minha alma um raio fugitivo de luz, luz sancta e pura de contentamento e felicidade!... Ha dez annos que não me alumia, e ella é tão bella, ainda quando passa como o relampago!»—E, depois de estar calado [291] alguns instantes, com um gesto de íntimo e angustiado cogitar, proseguiu:—Não, Hermengarda, não! Os vermes ainda não receberam a parte da sua herança que eu lhes retenho. Morri; porém não para isso que, na linguagem mentirosa do mundo, se chama a vida. Durante annos dei-a a devorar á desesperação, e a desesperação não pôde consummi-la. Pendurei-a alta noite, pela espessura das trevas, nas rochas escarpadas do mar do occidente, á beira dos precipicios, e o mar e os precipicios não quizeram tragá-la. Atirei-a á torrente impetuosa das batalhas, e o ferro embotou-se n'ella. O céu guardava-me para te ouvir palavras de amor e arrependimento; essas palavras de ineffavel doçura que nunca esperei escutar. É que na minha fronte está gravada a maldicção de cima: é que ainda me faltava o derradeiro martyrio... Ao menos posso acabar o teu: o pensá-lo é um refrigerio. Hermengarda, eu vivo ainda! Vivi para te salvar da deshonra, e todo o meu passado esqueci-o. Só uma cousa não, porque me subverteu para sempre o futuro; porque, depois de passageira alegria, me recalcou mais violentamente esperanças que ousaram um momento agitar-se no fundo desta alma, tranquilla na desesperança. Agora, [292] se ha repouso debaixo da campa, posso ir buscar lá meu repouso. Mas dize-me; oh, dize-me, ainda outra vez, que amas Eurico! Repete diante do que respira aquillo que proferiste diante da sombra creada pelo teu terror. Essas palavras e o morrer!... O teu amor e a morte; eis para mim a unica ventura possivel, mas que não tem igual na terra.

E Hermengarda sentia ao contacto daquella mão fria e trémula apertando a sua, no accento dessas phrases, tempestuosas como o oceano, tristes como céu procelloso, que lá, no peito do vulto que tinha ante si, havia um coração de homem vivo, onde chaga antiga e cancerosa vertia ainda sangue. A especie de pesadelo em que se debatia desapparecera com a realidade. O repentino impulso da sua alma foi lançar-se nos braços de Eurico. Fora elle o objecto do seu quasi infantil e unico amor, amor condemnado ao silencio antes do primeiro suspiro, antes do primeiro volver d'olhos; era elle o cavalleiro negro, cujo nome se tornara conhecido e glorioso por todos os angulos da Hespanha; era elle, finalmente, o homem que duas vezes acabava de salva-la. Reteve-a, todavia, o pudor e, talvez, aquella mysteriosa tristeza que escurecia as idéas desordenadas [293] vindas de tropel aos labios do guerreiro. Procurando asserenar a violencia dos affectos que a agitavam, Hermengarda respondeu com voz fraca e tremula:

«Bemdicta a mão do Senhor, que te salvou, Eurico, leal e nobre entre os mais nobres e leaes filhos dos godos! Graças á piedade do céu, que por meio de tantas desventuras e perigos nos uniu nos paços que restam ao filho do duque de Cantabria! No devaneiar do terror revelei-te, sem querer, o segredo do meu coração: a sua historia, ouviste-a. Perdoa á memoria de meu pae, e, se de mim depende a tua felicidade, as palavras que me saíram involuntariamente da boca te asseguram que serás feliz. O orgulho que a ambos nos fez desgraçados não o herdou Pelagio. Que o herdasse, mal caberia n'estas brenhas, na caverna dos fugitivos. E depois, que nome ha hoje na Hespanha mais illustre que o do cavalleiro negro, o nome de Eurico? Morreres?!... Oh, não? Salvaste Hermengarda do opprobrio: se nunca te houvera amado, ella te diria como te diz hoje: Sou tua, Eurico!»

A filha de Favila, cujo profundo e energico sentir mal poderia comprehender quem só a houvera visto no momento em que timida [294] recuava diante do perigo mais apparente que real das margens do Sallia, proferiu estas palavras com um tom de enthusiasmo, com uma expressão affectuosa tão íntima, que o guerreiro cahiu a seus pés. A ventura embargava-lhe a voz. O que lhe tumultuava no coração não tem nome na linguagem dos homens: era mais que a loucura. Com um movimento delirante, apertou contra os labios a mão da donzella. Queimavam! Depois de largo silencio, elle murmurou emfim:

«Minha!... Quem ha na terra que possa roubar-m'a?... Annos de tormentos, fostes como um dia de bonança e deleite! Imagem que absorveste esta existencia inteira; anjo que me fazes surgir do meu inferno para o teu céu, tu foste que me salvaste a mim! Oh, como é bom ser feliz!... Tinha-me já esquecido!... Como o sol deve agora ser bello, serena a aragem da tarde, meigo o murmurar do ribeiro, viçosa a verdura do prado!... Tinha-me tambem esquecido! Tens razão, Hermengarda. Quero viver: o viver é delicioso; delicioso, porque será comtigo... ao pé de ti... a adorar-te sempre, sem me lembrar do que existe, além de ti, no universo. Vem, minha amante, minha esposa! vem jurar [295] que me pertences, perante o altar e aos pés do sacerdote...»

A esta palavra fatal, um grito semelhante ao de homem ferido de morte, rompeu agudo e rapido do seio do cavalleiro. A mão d'Eurico abandonou a mão d'Hermengarda, e os seus olhos brilharam com fulgor infernal. Recuou, affastando de si a irman de Pelagio, sobresaltada por aquelle gesto subitamente demudado, por aquelle olhar ardente e vago. Ella não podia comprehender a causa de semelhante mudança... Com o braço esquerdo estendido, o guerreiro parecia querer arredá-la de si, emquanto com a mão confrangida apertava a fronte, como se buscasse esmagar um pensamento atroz que lhe surgia lá dentro.

«Affasta-te, mulher, que o teu amor me perdeu!—murmurou emfim.—Ha entre nós um abysmo: tu o abriste; eu precipitei-me nelle. Um crime, só um crime, póde unir-nos...» Fez uma pausa, e proseguiu:—E porque não se commetterá elle? Talvez obtivessemos perdão!... Perdão? Oh meu Deus, não o terias para o sacrilego... não!—Affasta-te, Hermengarda. Diante de ti tens um desgraçado, um desgraçado que fizeste!»

[296] A donzella uniu as mãos lavada em lagrymas, e exclamou:

«Eurico! Eurico! enlouqueceste?... Por piedade, explica-me este horroroso mysterio! Porque me repelles? que te fiz eu... eu que te amo, que sou tua, tua para sempre?!»

Mas os olhos scintillantes do cavalleiro tinham amortecido: derribado na lucta que travara com o destino, o seu combater de tantos annos terminava, finalmente. Um sorriso insensato substituiu-lhe no rosto as contracções habituaes de melancholia. Affigurava-se-lhe que em roda delle balouçava a caverna, e a luz fumosa da tocha que ardia segura no braço de ferro cravado na pedra parecia-lhe faiscar em fitas cor de sangue. Esvaído, vacillante, assentou-se n'um fragmento da rocha e, estendendo a mão para Hermengarda, pegou de novo na della e, com um sorriso indizivel, continuou em voz submissa:

«Dez annos!... Sabes tu, Hermengarda, o que é o passar dez annos amarrado ao proprio cadaver? Sabes tu o que são mil e mil noites consummidas a espreitar em horisonte illimitado a estrella polar da esperança e, quando, no fim, os olhos cansados e gastos se vão cerrar na morte, ver essa estrella reluzir [297] um instante e, depois, desfechar do céu nas profundezas do nada? Sabes o que é caminhar sobre silvados pelo caminho da vida e achar ao cabo, em vez do marco milliario onde o peregrino dê treguas aos pés rasgados e sanguentos, a borda de um despenhadeiro, no qual é força precipitar-se? Sabes o que isto é? É a minha triste historia! Estrella momentanea que me illuminaste, cahiste no abysmo! Arbusto que me retiveste um instante, a minha mão desfalecida abandonou-te, e eu despenhei-me! Oh, quanto o meu fado foi negro!»

Hermengarda contemplava-o com assombro e terror... Como o entenderia ella? Eurico proseguiu:

«Olha tu! Ao pôr do sol, no estio, ía eu assentar-me sobre um cerro maritimo, alongando a vista pelo oceano tranquillo, e parecia-me divisar-te desenhada na atmosphera a sorrir-me. Então, as lagrymas de felicidade começavam a brotar-me dos olhos: depois, lembrava-me de quem eu era, e essas lagrymas condensavam-se a meio das faces e queimavam como se fossem de metal candente. A horas mortas, correndo pelos desvios, quando o vento açoutava os arbustos enfezados da montanha, cada sombra que se [298] meneiava ao luar, sobre o chão pardacento, era a tua sombra que eu via. Outras noites, em que mais tranquillo podia, a sós comigo, engolfar-me nos pensamentos de Deus, a tua imagem vinha interpôr-se entre mim e a lampada mortiça que me alumiava, e o hymno do Presbytero de Carteia, que devia, talvez, escrever-se nos hymnarios das cathedraes da Hespanha, ficava incompleto ou terminava por uma blasphemia; porque, tambem, te via sorrir, mas a outrem, mas a homem feliz com o teu amor, e eu tinha então sede... sede de sangue... Era uma lenta agonia! E sempre tu ante mim: nas solidões das brenhas, na immensidade das aguas, no silencio do presbyterio, nos raios esplendidos do sol, no reflexo pallido da lua e, até, na hostia do sacrificio... sempre tu!... e sempre para mim impossivel!»

«Mas deliras!...—interrompeu Hermengarda.—Que tens tu com o Presbytero de Carteia; com esse illustre sacerdote, cujos hymnos sacros reboavam ainda ha pouco pelos templos da Hespanha, e a quem, de certo, o ferro impio dos arabes não respeitou? A tua gloria é outra e mais bella; a gloria de seres o vencedor dos vencedores da cruz. A sua era sancta e pacifica. Deus chamou-o [299] para si, e tu vives para ser meu. Ninguem existe hoje no mundo que possa embaraçá-lo. Esquece o passado; esquece-o por amor de mim!»

O cavalleiro sorriu de novo dolorosamente, e disse-lhe:

«Que tenho eu com o Presbytero de Carteia?!... Hermengarda, lembras-te do seu nome?»

Os labios da donzella fizeram-se brancos ao ouvir esta pergunta: um pensamento monstruoso e incrivel lhe passara pelo espirito. Com voz affogada e quasi imperceptivel replicou:

«Era.... era o teu, Eurico!... Mas que póde haver commum entre o guerreiro e o sacerdote? Que importa um nome... uma palavra?.... que...»

O cavalleiro pôs-se em pé e, deixando descahir os braços e pender o rosto sobre o peito, murmurou:

«Ha commum, que o guerreiro e o presbytero são um desgraçado só!... Importa, que esse desgraçado é neste momento um sacerdote sacrilego. O pastor de Carteia...»

«Oh não acabes!—interrompeu Hermengarda, com indizivel afflicção.

«Era Eurico, o gardingo!»

[300] Proferindo estas palavras, que explicavam o mysterio da sua existencia, o cavalleiro negro viu cahir como fulminada a filha de Favila. E elle não se moveu. A sua imaginação tresvariada affigurou-lhe perto de si o vulto suave e triste do veneravel Siseberto, que estendia a mão mirrada entre ambos, como para os dividir em nome da religião, que os devia salvar, e do sepulchro, a quem pertenciam.

Neste momento uma grande multidão de creanças, de velhos, de mulheres penetraram na caverna com gritos e chóros de terror. No coração das Asturias, entre alcantis intractaveis, no fundo de um vasto deserto, repetia-se o grito que mil vezes tinha soado na devastada Hespanha: «Os arabes!»

Amanhecera.

Aquelle sobresalto, tão impensado, revocou o cavalleiro ao sentimento da sua situação. Ajoelhou juncto de Hermengarda e, pegando-lhe na mão já fria, beijou-lh'a. Nas raias da vida, aquelle beijo, primeiro e ultimo, era purificado pelo halito da morte que se approximava: era innocente e sancto, como o de dous cherubins ao dizer-lhes o Creador: «existí!»

Depois ergueu-se, vestiu a sua negra armadura, [301] cingiu a espada, lançou mão do frankisk e, rompendo por entre o tropel, que fizera silencio ao vê-lo, desappareceu através da porta da gruta, cujas rochas tingia cor de sangue a dourada vermelhidão da aurora.



XIX

CONCLUSÃO



Da morte ás trévas,
Immortal, te diriges!

Merobaude: Poema de Christo.


A ventura das armas mosselemanas tinha chegado ao apogeu, e a sua declinação começava, finalmente. E na verdade, a ira celeste contra os godos parecia dever estar satisfeita. O solo da Hespanha era como uma ara immensa, onde as chammas das cidades incendiadas serviam de fogo sagrado para [303] consummir aos milhares as victimas humanas. O silencio do desalento reinava por toda a parte, e os christãos viam com apparente indifferença os seus vencedores polluirem as ultimas cousas que, até sem esperança, ainda defende uma nação conquistada—as mulheres e os templos. Theodemiro pagava bem caro o procedimento que o desejo de salvar os seus subditos o movera a seguir. O pacto feito por elle com os arabes não tardou a ser por mil modos violado, e o illustre guerreiro teve de se arrepender, mas já debalde, por haver deposto a espada aos pés dos infiéis, em vez de pelejar até a morte pela liberdade. Fora isto o que Pelagio preferira, e a victoria coroou o seu confiar no esforço dos verdadeiros godos e na piedade de Deus.

Os que tem lido a historia daquella epocha sabem que a batalha de Cangas de Onis foi o primeiro élo dessa cadeia de combates que, prolongando-se através de quasi oito seculos, fez recuar o koran para as praias d'Africa e restituiu ao evangelho esta boa terra d'Hespanha, terra, mais que nenhuma, de martyres. Na batalha de juncto do Auseba foram vingados os valentes que pereceram nas margens do Chryssus; porque mais de vinte mil sarracenos viram pela ultima vez [304] a luz do sol naquellas tristes solidões. Mas, nesse dia da punição, esta devia abranger assim os infiéis, como os que lhes haviam vendido a patria e que ainda vinham disputar a seus irmãos a dura liberdade de que gosavam nas brenhas intractaveis das Asturias.

O ardil de Pelagio para resistir com vantagem aos mosselemanos, cem vezes mais numerosos que os christãos, surtira o desejado effeito. Ainda que muito a custo, os cavalleiros enviados em cilada para a floresta á esquerda das gargantas de Covadonga poderam chegar ahi sem serem sentidos dos arabes, que se haviam approximado mais cedo do que o fizera crer a narração do velho Vellido. Os infiéis pararam nas bordas do Deva, no sitio em que rompia do valle, e os seus almogaures tinham ousado penetrar ávante. Os cavalleiros da cilada, que a pouca distancia passavam manso e manso, ouviram distinctamente o tropeiar dos ginetes inimigos.

Mas, quando, ao primeiro alvor da manhan, Pelagio se encaminhava com o seu pequeno esquadrão para a garganta das serras, já os arabes rompiam por ella e começavam a espraiar-se, como ribeira que, saindo de leito apertado, se dilata pela campina. Os christãos recuaram, e os infiéis, attribuindo [305] ao temor esta fuga simulada, precipitaram-se após elles. Pouco a pouco, o duque de Cantabria attrahiu-os para a entrada da gruta de Covadonga. Chegado alli, pondo á boca a sua buzina, tirou um som prolongado. Immediatamente os cimos dos rochedos, que pareciam inaccessiveis, cubriram-se de fundibularios e frecheiros, e uma nuvem de tiros choveu de toda a parte sobre os africanos e sobre os renegados godos. Vacillaram; mas o desejo da vingança levou-os a apinharem-se, esquadrões após esquadrões, á entrada da caverna, onde, finalmente, encontravam desesperada resistencia. Então, como se despegassem do céu, grandes rochedos começaram a rolar sobre elles dos cimos do precipicio que lhes ficava sobranceiro. Mãos invisiveis os impelliam. Cada rocha traçava no meio daquelle vulto informe que oscillava, naquella vasta planicie de alvos turbantes e de capacetes reluzentes, uma escura mancha, semelhante a chaga horrivel. Eram dez ou vinte guerreiros, cujos membros esmagados, cujos ossos triturados, cujo sangue confundido espirravam por cima das frontes dos seus companheiros. Era medonho!—porque a esse espectaculo se ajunctava o grito de raiva e desesperação dos pelejadores, grito [306] feroz e agudo, só comparavel ao bramido de cem leoas a quem os caçadores do Atlas houvessem, na ausencia dellas, roubado os seus cachorrinhos.

Pela volta da tarde, apenas do numeroso e brilhante exercito dos arabes alguns milhares de cavalleiros fugiam desalentados diante dos foragidos das Asturias, que os perseguiam incansaveis além de Cangas de Onis.

Fora no momento em que Pelagio penetrava, na sua fingida fuga, sob o vasto portal da gruta que o cavalleiro negro saía. O joven guerreiro viu-o e estremeceu. Eurico tinha as faces encovadas, o rosto pallido e transtornado, e havia em todo o seu gesto uma tão singular expressão de tranquillidade que fazia terror. Emquanto os christãos defendiam a entrada elle esteve quedo, como indifferente ao combate; mas, logo que os arabes, acommettidos já pelas costas, principiaram a recuar, e que Pelagio pôde combater na planicie, o cavalleiro, abrindo caminho com o frankisk, desappareceu no meio dos inimigos. Desde esse momento, debalde o duque de Cantabria o buscou: nem elle, nem ninguem mais o viu.

Era quasi ao pôr do sol. Seguindo a corrente do Deva, a pouco mais de duas milhas [307] das encostas do Auseba, dilatava-se nessa epocha denso bosque de carvalhos, no meio do qual se abria vasta clareira, onde sobre dous rochedos aprumados assentava um terceiro. Era, provavelmente, uma ara celtica. Em frente de tosca ponte de pedras brutas lançada sobre o rio, uma senda estreita e tortuosa atravessava a selva e, passando pela clareira, continuava por meio dos outeiros vizinhos, dirigindo-se, nas suas mil voltas, para as bandas da Gallecia. Quatro cavalleiros, a pé e em fio, caminhavam por aquelle apertado carreiro. Pelos trajos e armas, conhecia-se que eram tres christãos e um sarraceno. Chegados á clareira, este parou de repente e, voltando-se com aspecto carregado para um dos tres, disse-lhe:

«Nazareno, offereceste-nos a salvação, se te seguissemos: fiámo-nos em ti, porque não precisavas de trahir-nos. Estavamos nas mãos dos soldados de Pelagio, e foi a um aceno teu que elles cessaram de perseguir-nos. Porém o silencio tenaz que tens guardado gera em mim graves suspeitas. Quem és tu? Cumpre que sejas sincero, como nós. Sabe que tens diante de ti Mugueiz, o amir da cavallaria arabe, Juliano, o conde de Septum e Oppas, o bispo d'Hispalis.»

[308] «Sabía-o:—respondeu o cavalleiro—por isso vos trouxe aqui. Queres saber quem sou? Um soldado e um sacerdote do Christo!»

«Aqui!?... atalhou o amir, levando a mão ao punho da espada e lançando os olhos em roda. Para que fim?»

«A ti, que não eras nosso irmão pelo berço; que tens combatido lealmente comnosco, inimigos da tua fé; a ti que nos opprimes, porque nos venceste com esforço e á luz do dia, foi para te ensinar um caminho que te conduza em salvo ás tendas dos teus soldados. É por alli!... A estes, que venderam a terra da patria, que cuspiram no altar do seu Deus, sem ousarem francamente renegá-lo, que ganharam nas trevas a victoria maldicta da sua perfidia, é para lhes ensinar o caminho do inferno... Ide, miseraveis, segui-o!»

E quasi a um tempo dous pesados golpes de frankisk assignalaram profundamente os elmos de Oppas e Juliano. No mesmo momento mais tres ferros reluziram.

Um contra tres!—Era um combate calado e temeroso. O cavalleiro da cruz parecia desprezar Mugueiz: os seus golpes retiniam só nas armaduras dos dous godos. Primeiro o velho Oppas, depois Juliano cahiram.

[309] Então, recuando, o guerreiro christão exclamou:

«Meu Deus! Meu Deus!—Possa o sangue do martyr remir o crime do Presbytero!»

E, largando o frankisk, levou as mãos ao capacete de bronze e arrojou-o para longe de si.

Mugueiz, cego de colera, vibrara a espada: o craneo do seu adversario rangeu, e um jorro de sangue salpicou as faces do sarraceno.

Como tomba o abeto solitario da encosta ao passar do furacão, assim o guerreiro mysterioso do Chryssus cahia para não mais se erguer!...

Nessa noite, quando Pelagio voltou á caverna, Hermengarda, deitada sobre o seu leito, parecia dormir. Cansado do combate e vendo-a tranquilla, o mancebo adormeceu, tambem, perto della, sobre o duro pavimento da gruta. Ao romper da manhan, acordou ao som de cantico suavissimo. Era sua irman que cantava um dos hymnos sagrados que muitas vezes elle ouvira entoar na cathedral de Tárraco. Dizia-se que seu auctor fora um Presbytero da diocese de Hispalis, chamado Eurico.

Quando Hermengarda acabou de cantar [310] ficou um momento pensando. Depois, repentinamente, soltou uma destas risadas que fazem erriçar os cabellos, tão tristes, soturnas e dolorosas são ellas: tão completamente exprimem irremediavel alienação d'espirito.

A desgraçada tinha, de feito, enlouquecido.



NOTAS



Pag. X


«Chronica-poema, lenda, ou o que quer que seja.»


Sou eu o primeiro que não sei classificar este livro; nem isso me afflige demasiado. Sem ambicionar para elle a qualificação de poema em prosa—que não o é por certo—tambem vejo, como todos hão-de ver, que não é um romance historico, ao menos conforme o creou o modelo e a desesperação de todos os romancistas, o immortal Scott. Pretendendo fixar a acção que imaginei n'uma epocha de transição—a da morte do imperio gothico, e do [312] nascimento das sociedades modernas da Peninsula, tive de luctar com a difficuldade de descrever successos e de retratar homens que, se, por um lado, pertenciam a eras que nas recordações da Hespanha tenho por analogas aos tempos heroicos da Grecia, precediam immediatamente, por outro, a epocha a que, em rigor, podemos chamar historica, ao menos em relação ao romance. Desde a primeira até a ultima pagina do meu pobre livro caminhei sempre por estrada duvidosa traçada em terreno movediço; se o fiz com passos firmes ou vacillantes, outros, que não eu, o dirão.

Conhecemos, talvez, a sociedade wisigothica melhor que a d'Oviedo e Leão, que a do nosso Portugal no primeiro periodo da sua existencia como individuo politico. Sabemos melhor quaes foram as instituições dos godos, as suas leis, os seus usos, a sua civilisação intellectual e material, do que sabemos o que era isso tudo em seculos mais proximos de nós. O esplendor dos paços, as formulas dos tribunaes, os ritos dos templos, a administração, a milicia, a propriedade, as relações civís são menos nebulosas e incertas para nós nas eras gothicas que durante o longo periodo da restauração christan. E, comtudo, o reproduzir a vida dessa sociedade, que nos legou tantos monumentos, com as fórmas do verdadeiro romance historico temo-lo por impossivel, ao passo que o representar a existencia dos homens do undecimo ou dos seguintes seculos será para o que os tiver estudado, não digo facil, mas, sem duvida, possivel.

Qual é a causa d'isto?

É que nós conhecemos a vida publica dos wisigodos e não a sua vida íntima, emquanto os seculos [313] da Hespanha restaurada revelam-nos a segunda com mais individuação e verdade que a primeira. Dos godos restam-nos codigos, historia, litteratura, monumentos escriptos de todo o genero, mas os codigos e a litteratura são reflexos, mais ou menos pallidos, das leis e erudição do imperio romano, e a historia desconhece o povo. O gothicismo hespanhol, ao primeiro aspecto, parece mover-se. Palpamo-lo: é uma estatua de marmore, fria, immovel, hirta. As portas das habitações dos cidadãos cerram-nas os sete sellos do Apocalypse: são a campa da familia. A familia goda é para nós como se nunca existira.

Não cabe n'uma nota o fazer sentir esse não sei quê de magestade esculptural que conserva sempre a raça wisigothica, por mais que tentemos galvanisá-la, nem o contrapor-lhe as gerações nascidas durante a reacção contra o islamismo, que surgem e agitam-se e vivem quando lhes applicamos a corrente electrica e mysteriosa que, partindo da imaginação, vai despertar os tempos que foram do seu calado sepulchro.

Desta differença, que é mais facil sentir que definir, nasce a necessidade de estabelecer uma distincção nas fórmas litterarias applicadas ás diversas epochas da antiga Hespanha, a romano-germanica, e a moderna.

O periodo wisigothico deve ser para nós como os tempos homericos da Peninsula. Nos cantos do Presbytero tentei achar o pensamento e a cor que convem a semelhante assumpto, e em que cumpre predominem o estylo e fórmas da Biblia e do Edda—as tradições christans, e as tradições gothicas, que, partindo do oriente e do norte, vieram encontrar-se [314] e completar-se, em relação á poesia da vída humana, no extremo occidente da Europa.

O romance historico, como o concebeu Walter Scott, só é possivel áquem do oitavo—talvez só áquem do decimo seculo; porque só áquem dessa data a vida da familia, o homem sinceramente homem, e não ensaiado e trajado para apparecer na praça publica, se nos vai pouco a pouco revelando. As fórmas e o estylo que convem aos tempos wisigothicos seriam, desde então, absurdos e, parece-me, até, que ridiculos.

A Hespanha romano-germanica transformou-se na Hespanha rigorosamente moderna no terrivel cadinho da conquista arabe. A obra litteraria (novella ou poema—verso ou prosa—que importa?) relativa a essa transição deve combinar as duas fórmulas—indicar as duas extremidades a que se prende; fazer sentir que o descendente de Theoderik ou de Leuwighild será o ascendente do Cid ou do lidador; que o heroe se vai transformar em cavalleiro; que o servo, entidade duvidosa entre homem e cousa, começa a converter-se em altivo e irrequieto burguez.

E a fórma e o estylo devem approximar-se mais ou menos d'um ou d'outro extremo, conforme a epocha em que lançamos a nossa concepção está mais vizinha ou mais remota da que vai deixando d'existir ou da que vem surgindo. A difficultosa mistura dessas cores na palheta do artista nenhuma doutrina, nenhum preceito lh'a diz: ensinar-lh'a-ha o instincto.

Tive eu esse instincto?—É mais provavel o não que o sim.—Se a arte fora facil para todos os que tentam possuí-la, não nos faltariam artistas!


[315]

Pag. 2.


«Leuwighild expulsara da Hespanha os derradeiros soldados dos imperadores .......... e expirara em Toletum.»


Hesitei muito tempo sobre se conviria usar dos nomes proprios, quer de pessoas quer de logares, como as successivas alterações da linguagem na Hespanha os foram transformando, a ponto de muitos delles se acharem hoje totalmente diversos do que eram na sua origem. Destas mudanças, aquellas que apenas consistiam no augmento ou diminuição de uma letra, ou na diversidade das desinencias, podiam, talvez, ser admittidas sem darem um aspecto anachronico ao livro. Outros nomes, porém, havia, sobretudo nas designações corographicas, tão completamente alterados, que me repugnava o substituir o moderno ao antigo. Assim Toletum, Emérita seriam sem difficuldade representados por Toledo e Mérida; mas, como substituir, sem anachronismo na expressão, Sevilha a Hispalis, Leão a Legio, Guadalete a Chryssus e, finalmente, Burgos a Augustobriga, quando, como neste caso, até a situação da moderna cidade não é exactamente a da antiga povoação? Preferi, portanto, conservar os nomes primitivos, os quaes, não influindo de modo algum na ordem e clareza da narrativa, podem facilmente encontrar-se em qualquer diccionario ou tractado de geographia antiga.

Aos nomes individuaes dos primeiros wisigodos procurei conservar, quando alludi a elles, os vestigios da origem gothica: aos dos personagens do [316] meu livro conservei as fórmas alatinadas que se encontram nos monumentos contemporaneos, porque, segundo todas as probabilidades, já nesta epocha o elemento romano de todo havia triumphado na lingua.


Pag. 9.


«Gardingo na corte de Witiza, tiuphado ou millenario do exercito wisigothico.»


Uma das cousas mais disputadas na historia das instituições gothicas é a natureza dessa classe de individuos, que tantas vezes figuram nos monumentos daquellas epochas, chamados gardingos (gardigg em lingua gothica). Masdeu e com elle Romey, que o traduz quasi sempre ácerca da historia dos wisigodos, postoque não o cite senão neste logar, são de parecer que o gardingato não era um titulo de nobreza, mas do cargo de substituto do duque (governador de provincia) como o vicarius o era do conde (governador de cidade). Aschbach deriva a palavra de Gards, que significa solar com terras adjacentes, e parece querer confirmar assim a opinião de Vossio, que pretendia fossem os administradores ou almoxarifes dos palacios reaes, opinião que sería mui difficil de sustentar á vista de varios monumentos hispano-gothicos. Segui o parecer de Grimm e Lembke, que suppõem formarem os gardiggos uma classe de curiales (cortesãos) ou nobres. Neste caso não serviria a etymologia gards para indicar no gardingato uma nobreza estribada sobre certa extensão e importancia de propriedade territorial, formando a terceira classe de nobreza depois dos duces e comites? Rosseeuw-Saint-Hilaire [317] pensa-o assim e faz o gardingo synonimo de Procer. Procer, todavia, não indicava em especial o gardingo, mas era denominação generica da nobreza.

Quanto ao cargo de tiuphado ou tiufado, deve saber-se que o exercito godo se dividia em corpos de mil homens, e estes em companhias e esquadras de cem e de dez. Abaixo do tiuphado (thiud ou theod povo e fath conduzir, ou, segundo outra derivação, taihunda mil e fath) que, tambem, se chamava millenario (da etymologia latina mille) estava o quingentario, segundo uns, capitão de quinhentos homens, especie de major dos regimentos modernos, e, segundo outros, substituto do tiuphado ou semelhante aos nossos tenentes-coroneis. A companhia de cem homens (centuria) era regida por um centenario, e a de dez (decania) por um decano.


Pag. 13.


«Com a fluctuante stringe.»


O vestido civil dos wisigodos era uma especie de tunica chamada Stringe ou Strigio, já d'antes conhecida pelos romanos. O clero usava deste trajo como os seculares, com a differença de ser branco ou d'outra cor modesta, porque o havia, até, cor de purpura, o uso da qual era severamente prohibido aos sacerdotes. Veja-se Masdeu, Hist. Crit. d'Esp. T. 11, p. 63 e 197, e Ducange e Carpentier ás palavras Stringes, Strigio.


[318]

Pag. 16.


«O ostiario buscava.»


A igreja goda empregava oito ministros na celebração do culto: 1.º o Ostiario, que abria e fechava o templo, cuidava da conservação dos objetos do culto e vigiava que não assistissem ao sacrificio herejes ou excommungados: 2.º o Acolito, que illuminava os altares e tinha na mão um candelabro emquanto se lia o evangelho: 3.º o Exorcista, a quem incumbia o expulsar o demonio dos possessos: 4.º o Psalmista, que levantava no coro as antiphonas, psalmos e hymnos: 5.º o Leitor, que lia em alta voz as prophecias do Antigo Testamento e as Epistolas e as explicava ao povo: 6.º o Subdiacono, que recebia as oblações dos fiéis e dispunha as vestiduras e vasos sagrados para a missa: 7.º o Diacono, que ajudava a esta e dava a communhão: 8.º o Presbytero, que sacrificava, prégava e dava a benção ao povo.


Pag. 17.


«De Draconcio, de Merobaude e de Orencio.»


Poetas celebres hispano-godos do seculo V.—De Draconcio resta-nos o Carmen de Deo e uma epistola dirigida a Gunth-rik rei dos vandalos. De Merobaude subsiste um fragmento do Poema de Christo. D'Orencio, tão elogiado pelo poeta Fortunato e por Sidonio Apollinario, apenas resta uma pequena poesia na Bibliotheca Veterum Patrum.


[319]

Pag. 26.


«Não eram assim os godos de oeste.»


A raça dos godos, asiatica na origem e germanica na lingua, que, antes de occupar uma parte do territorio romano, habitava ao norte do Ponto Euxino (Mar Negro), dividia-se em duas grandes familias, cujas denominações provieram da sua situação relativa. Os que estanceiavam ao oriente chamavam-se ost-goths (godos de leste) e depois, corruptamente, ostrogodos; os que demoravam ao occidente eram os west-goths (godos de oeste) ou wisigodos, que, depois de ora servirem o imperio como alliados, ora assolarem-no como inimigos, vieram fazer assento no sul das Gallias e na Peninsula, estabelecendo, a final, em Toledo o centro do seu imperio.


Ibidem.


«Combatia nos campos catalaunicos.»


A celebre batalha dada por Theoderik, rei dos wisigodos, e pelo general romano Aecio, seu alliado, ao feroz Attila nos campi catalaunici (planicies de Chalons-sur-Marne) é o mais celebre entre os terriveis combates que custou á Europa no V seculo a dissolução do grande cadaver romano. Podem-se ver em Jornandes e no Panegyrico de Avito por Sidonio Apollinario as particularidades deste successo.


[320]

Pag. 42.


«Rodeiaremos a Ilha Verde.»


Algeziras. Este nome foi posto pelos arabes ao logar onde Tarik veio aportar, saindo de Ceuta para a conquista d'Hespanha. O ilheu, hoje chamado das Pombas, fica a um tiro d'espingarda daquella povoação, á qual passou o nome que os arabes tinham dado á ilhota, vendo-a verdejar ao longe:—Djezirat-al-Hadra (ilha-verde). Ignorando-lhe o nome antigo, suppuz que essa denominação de origem arabica era anterior e que já os godos lh'a attribuiam. O anachronismo é, a meu ver, assás desculpavel.


Pag. 46.


«O amiculo alvissimo.»


O amiculo, que entre os romanos era proprio das mulheres de baixa esphera, tornou-se em Hespanha trajo commum das mais honestas e nobres: era uma especie de manto, com que cubriam as vestiduras inferiores: Os cabellos encerravam-nos n'uma como coifa, denominada retíolo. Veja-se Masdeu, Hist. Crit. T. 11, p. 6.


Pag. 55.


«Para o lado dos campos gothicos.»


Os wisigodos tinham dado em especial o nome [321] de Campi gothici ás planicies de Leão e da Extremadura Hespanhola. D'ahi, contrahida a menor territorio, veio a denominação da terra de Campos.


Pag. 67.


«Wali de Sebta.»


«Wali: Prefeito, caudilho principal, governador de provincia, general d'exercito:» Conde, Declar. de alg. nom. arabes. Juliano era, segundo parece, o governador da provincia gothica d'além do Estreito, chamada Transfretana; cabia-lhe por isso entre os arabes o titulo de Wali. Sebta é a corrupção arabica do nome de Septum, corrupção d'onde os nossos antigos formaram Cepta e, depois, Ceuta.


Pag. 70.


«Os golpes do frankisk godo.»


O frankisk ou frankiska era uma especie de machadinha de dous gumes, usada pelos frankos, de quem os godos a tomaram. Consulte-se Masdeu, Hist. Crit. T. 11, p. 52—e Ducange, verb. Francisca. A Cateia, de que adiante se ha-de falar, era uma lança curta ou dardo, a origem, talvez, da azcuma dos tempos posteriores.


Pag. 82.


«A antiga Romula.»


Sevilha no tempo dos romanos tinha dous nomes—Romula [322] e Hispalis. Este ultimo veio a prevalecer, emfim. Veja-se Flores, Esp. Sagr. T. 9, p. 87.


Pag. 85.


«O Propheta de Yatrib.»


Mohammed era natural de Medina. Esta cidade chamava-se Yatrib. Foi elle quem lhe poz o nome de Medina-al-Nabi—Cidade do Propheta.


Pag. 87.


«Calpe, ou Geb-al-Tarik.»


Os arabes, tendo desembarcado nas costas d'Hespanha e vendo que a montanha do Calpe era um logar grandemente defensavel, fortificaram-se ahi, porventura emquanto esperavam o resto do exercito que passava d'Africa. A montanha recebeu então o nome de Geb-al-Tarik (monte de Tarik) e, tambem, o de Gel-al-Fetah (monte da Entrada). Da palavra Geb-al-Tarik se formou depois a de Gibraltar.


Pag. 89.


«Os crentes do Islam.»


Islam em arabe, o islamismo ou religião do koran. Significa, propriamente, esta palavra resignação; resignação em Deus.


[323]

Pag. 90.


«Alguns esculcas.»


Esculcas eram, nos tempos barbaros, chamadas as rondas ou sentinellas nocturnas dos arraiaes. Esta palavra encontra-se nos escriptores do VI seculo e dos seguintes, como em S. Gregorio Magno; sculcas quos mittitis sollicitè requirant: Epist. 12—23.—A fórma pura do vocabulo, Exculcatores, apparece já em Vegecio: depois, por abbreviatura, Exculcae e Sculcae. Sculcas são contrapostos aos atalaias nas leis das Partidas. P. 2. tit 26, onde estes significam guardas de dia.


Ibidem.



«Os romanos!—e a turba repetiu:—Os romanos!»


Os arabes designavam os christãos ou, antes, em geral, qualquer europeu pelo nome de al-rumi, o romano, quer fosse grego, franko ou hespanhol. Aquelles mesmos que abraçavam o islamismo conservavam este appellido. Tal era o amir ou general da cavallaria, Mugueiz, um dos mais famosos companheiros de Tarik. Quando, em especial, os pretendiam designar, não pela differença de raça, mas pela de crença, denominavam-nos Nassrani (nazarenos).


[324]

Pag. 99.


«O grito de Allah-hu-Acbar


Deus só é grande! era para os arabes a voz de accommetter, como, depois, foi para os christãos o grito de Sanctiago!


Pag. 109.


«Ao longo da ephippia.»


A ephippia era uma especie de sella de lan que os godos haviam imitado da cavallaria romana.


Pag. 117.


«Debaixo das pancadas violentas dos mangoaes.»


«As armas delles (dos berebéres e arabes africanos) quasi se limitam a páus compridos a que se prendem pequenos tóros atados pelo meio, que no combate descarregam sobre os inimigos com ambas as mãos:» Alkhathib, Pleni-Lunii Splendor, em Casiri, T. 2, p. 258.


Pag. 153.


«Os cheiks.»


Como a palavra latina senior (o mais velho) veio a significar no latim barbaro e no romance ou linguas vulgares das nações modernas, o principal, o senhor, assim a palavra arabe Cheik, Chek, Xeque, [325] isto é, o ancião, tomou entre os sarracenos a significação de senhor ou chefe de uma tribu.


Pag. 157.


«Ás supplicas do velho buccellario.»


No imperio godo os buccellarios vinham a ser o mesmo que os clientes dos romanos, homens livres addictos ás familias poderosas, por quem eram patrocinados e, talvez, sustentados, se, como pretende Masdeu e o seu, nesta parte, quasi traductor Romey, o nome buccellarius lhes provinha de buccella (migalha de pão). O Codigo Wisigothico (Liv. 5. tit. 3.º) estabelece os deveres e relações destes homens com seus amos e patronos. A obrigação mais importante do buccellario parece ter consistido no serviço militar: Si ei... arma dederit. É por isso que se me affigura mais provavel a etymologia que a semelhante denominação attribue com preferencia o erudito Canciani (Barbar. Leg. Ant. Vol. 4, p. 117) derivando-a da palavra scandinava buklar (o escudo), transformada no idioma germanico em buckel e nas linguas modernas em buckler, bouclier, broquel. Neste caso o buccellario corresponderia ao armigero ou escudeiro do seculo 12 e 13, que, significando na sua origem o que trazia as armas ou o escudo do seu senhor ou amo, veio a tomar-se por um homem d'armas de certa distincção, a quem, todavia, faltava o grau de cavalleiro.


[326]

Pag. 164.


«E as suas almas puras abrigavam-se no seio immenso de Deus.»


O facto narrado neste capitulo é historico. O logar da scena e a epocha é que são inventados. Foram as monjas de Nossa Senhora do Valle, juncto d'Écija, que, em tempos posteriores, practicaram este feito heroico, para se esquivarem á sensualidade brutal dos arabes. Parece que o procedimento das freiras d'Écija foi imitado em muitas outras partes. Consulte-se Berganza, Antiguedades de España, T. 1, pag. 139; e Morales, Cron. Gener. T. 3, pag. 105.


Pag. 197.


«O imperio de Andalús.»


Segundo Lembke, cuja opinião assenta no testemunho de Ibn-Said e de Ahmed-Al-makkari, os arabes conheciam a Hespanha, antes da conquista, pelo nome de Andalós ou Andalús, nome que, depois, applicaram em especial ao territorio entre o Wadi-Al-Kebir e o Wadi-Ana (Guadalquivir e Guadiana), isto é, á moderna Andalusia. O nome de Al-Gharb (o occidente) que, igualmente, deram á Peninsula para a distinguir da Mauritania (Al-Moghreb) veio, tambem, a contrahir-se á nossa provincia do Algarve.


[327]

Pag. 197.


«Alfaqui dos romanos.»


Alfaquih. É titulo que os africanos dão aos seus sacerdotes e sabios da lei: Moura, Vestig. da Lingua Arab. p. 38.


Pag. 220.


«Os nazarenos d'Al-Djuf.»


As grandes divisões da Hespanha, segundo a geographia arabe, eram quatro:—Al-Gharb o occidente; Al-Sharhiah o oriente; Al-Kiblah o meio-dia; Al-Djuf o norte. Era esta, por isso, a designação dos territorios christãos das Asturias e Cantabria.


Pag. 270.


«Os ultimos aripennes de terra livre.»


O aripennis, arapennis, agripennis, ou arpentum, d'onde veio a palavra franceza arpent, era uma medida d'extensão igual a metade do jugerum, d'onde tomámos a palavra geira. O aripenne media-se em quadro e tinha de cada lado 12 pérticas, medida que equivalia a dous palmos. Masdeu affirma que o aripenne era medida especial da Betica, o que é inexacto; porque ella se acha mencionada em muitos documentos, não só de outras provincias d'Hespanha, mas tambem de diversos paizes, como se póde ver em Ducange, á palavra Arapennis.


[328]

Pag. 308.


«Primeiro o velho Oppas, depois Juliano cahiram.»


Nas mil tradições diversas, quer antigas, quer inventadas em tempos mais modernos, sobre o modo como se constituiu a monarchia das Asturias procurei cingir-me, ao menos no desenho geral, ao que passa por mais rigorosamente historico. Todavia, cumpre advertir que Pelagio viveu, segundo todas as probabilidades, em tempos um pouco posteriores á conquista arabe e que a morte de Oppas e de Juliano na batalha de Cangas de Onis, successo narrado por alguns escriptores, tem sobrados caractéres de fabulosa. A minha intenção, porém, foi, como já notei, pintar os homens da epocha de transição, digamos assim, dos tempos heroicos da historia moderna para o periodo da cavallaria, brilhante ainda, mas já de dimensões ordinarias. O meu heroe do Chryssus é como o ultimo semideus que combate na terra; os foragidos de Covadonga são como os primeiros cavalleiros da longa, patriotica e tenaz cruzada da Peninsula contra os sarracenos. Deste modo, sendo hoje difficultoso separar, em relação áquellas eras, o historico do fabuloso, aproveitei d'um e d'outro o que me pareceu mais appropriado ao meu fim.



Notas de Rodapé:

[1] Jesus.



Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 12 poeta O templo ... poeta. O templo
#pág. 125 Rudederico ... Ruderico
#pág. 138 coração,» ... coração.»
#pág. 139 Naquelle noite ... Naquella noite
#pág. 165 nãa ... não
#pág. 175 descalvagou ... descavalgou
#pág. 204 do um amor ... de um amor
#pág. 298 ferro impio das arabes ... ferro impio dos arabes
#pág. 318 commumunhão ... communhão


As aspas foram mantidas tal como surgiam no original (mesmo que pareçam em falta).






End of Project Gutenberg's Eurico o presbytero, by Alexandre Herculano

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK EURICO O PRESBYTERO ***

***** This file should be named 45966-h.htm or 45966-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/4/5/9/6/45966/

Produced by Rita Farinha, Alberto Manuel Brandão Simões
and the Online Distributed Proofreading Team at
http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned
images of public domain material from the Google Print
project.)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License available with this file or online at
  www.gutenberg.org/license.


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS', WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation information page at www.gutenberg.org


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at 809
North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887.  Email
contact links and up to date contact information can be found at the
Foundation's web site and official page at www.gutenberg.org/contact

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org

Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit www.gutenberg.org/donate

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit:  www.gutenberg.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For forty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.

Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.

Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     www.gutenberg.org

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.